O ritual da barba

"Lá Pela Terra", por Vânia Calado

Havia alguma coisa de ritual em tudo aquilo. Um técnica rústica, agressiva, mas simples. Um cortar sem medo, decidido e certo.

Eram outros tempos em que a espuma não vinha numa lata e em que as lâminas não se adaptavam ao rosto. Não importava se no final a pele estava suave ou áspera. Ao toque das mãos de trabalho a pele do homem seria sempre agressiva.

Faziam a barba onde calhava. Tanto dava ser ao lado de uma janela cheia de sol ou só com uma nesga de luz a entrar pela porta da rua.

O espelho, sem direito a moldura e já comido pelo passar do tempo, ficava pendurado num prego que tinha sido arranjado à pressa. Uma solução frágil, mas que mesmo assim conseguia aguentar-se na parede.

Por baixo, uma bacia cheia de água quente estava apoiada numa daquelas armações de ferro que nos dias de hoje servem de decoração nas casas de campo. Ali penduravam a toalha pronta a entrar ao serviço.

Numa taça preparavam o creme branco. O sabão bem mexido com o pincel de pêlos brancos que também servia para o espalhar na cara. A barba escura e forte, começava a ficar coberta pelo sabão transformado em espuma. O queixo levantado e os lábios puxados para cima para cobrir o pescoço de espuma.  A cara ensaboada estava pronta para o corte.

Os homens ficavam em mangas de camisa em frente ao espelho mal iluminado, curvados para à frente numa tentativa de ver melhor a cara coberta de espuma. A lâmina passava a ocupar o lugar do pincel.

As lâminas afiadas estavam guardadas num papel, bem protegidas de mãos alheias. Eram retiradas com cuidado e colocadas no barbeador em posição de corte. Mergulhavam a lâmina na água quente antes de levar à face.

Quando passava na pele ouvia-se a luta entre a barba e a lâmina afiada, um arranhar arrastado e profundo.

Era um trabalho que levava tempo. A precisão do corte para levar só a barba e a espuma. O risco vermelho que aparecia quando a lâmina ia mais funco do que o que devia. A lâmina a bater na bacia para largar os pêlos e a passar na água para limpar a lâmina. A água a ficar com um tom escuro. A espuma do sabão a boiar à superfície. O repetir dos gestos.

Quando o trabalho se dá por terminado, as mãos em concha levam a água até à cara para limpar oque restava da espuma. A cara ficava de barba desfeita e com pequenos pontos vermelhos que escorriam até ao queixo.

A toalha limpava o que a água não conseguia levar, arrumava-se o material no sitio devido à espera da próxima vez e a água da bacia era lançada à rua sem se ver onde ia parar.

A barba estava desfeita.


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