O teto veio abaixo

Por João Fróis

Na ancestral sabedoria popular, ter um teto onde se abrigar sempre foi, mais que uma necessidade, o anseio da construção de um lar onde cada família se possa fixar. A relação com a propriedade conheceu ao longo dos tempos inúmeras tensões entre classes, mas talvez nunca como agora o direito à habitação esteja a ser tão abalado pela voragem capitalista.

A constituição da república estabelece no seu artº 65, dedicado à habitação e urbanismo, o direito de todos terem para si e para a sua família, uma habitação. E define como incumbência do Estado a programação e execução de uma política de habitação. Através da construção de habitações económicas e sociais, estimulando a construção privada e a criação de cooperativas de habitação. Por último determina uma política de renda compatível com o rendimento familiar.

Não carece de ir mais longe para perceber o quão distantes estamos deste quadro legal de intenções. Porque o são no papel, mas não traduzíveis na realidade.

Não existe uma verdadeira política de habitação em Portugal. Nas décadas de 1980 e 90 houve um incentivo claro à construção e foi assim que vimos as cidades crescerem, tantas vezes mal, com uma profusão de gruas na paisagem. A oferta disparou, mas sobre o cadáver do arrendamento, morto pelo congelamento de anos e que afastou em definitivo o investimento para renda, apontando todas as baterias à compra e venda. A especulação conheceu aqui terreno fértil, mas como a oferta era abundante, os preços iam sendo nivelados pela oferta e procura.

O Estado deixou de construir habitação social e perdeu esse fator de controlo sobre as rendas, tal como acontece em vários países da Europa. Nesses países a percentagem da habitação social e pública varia entre 10% a 25%, tendo um peso suficiente para ajudar a corrigir desvios e a manter o valor das rendas em montantes adequados ao rendimento. Em Portugal o estado detém apenas cerca de 2% da habitação, claramente insuficiente para terem efeitos palpáveis sobre o aumento das rendas. Se a isto juntarmos a atual crise financeira com os juros em alta em níveis há muito não vistos e um quadro de crédito bancário de taxas variáveis ligadas ao Euribor, temos as condições reunidas para a famosa tempestade “perfeita”. Também aqui Portugal escolheu o caminho mais fácil, mas também mais perigoso. Porque na globalidade as taxas na Europa são fixas. Mais altas, mas imunes às variações e que permitem uma estabilidade habitacional que por cá não existe. Se os bancos aproveitaram anos de juros muito baixos para incentivar o crédito, forçando vezes a mais a taxa de esforço para lá dos aconselháveis 35% do rendimento disponível, não conseguem agora apoiar quem estimularam a contrair uma dívida, fazendo aplicar aumentos de prestações tão fortes que estão a atirar, literalmente, milhares para tendas, insolvência e emigração.

A questão primordial prende-se com a ética. Quando o Estado permite que a habitação se torne no principal investimento do mercado, sem capacidade de modelação e correção dos desvios grosseiros da especulação, o caos é inevitável. Porque se os juros da poupança se transformaram num rio seco, o mercado bolsista se tornou tão instável que afugenta os investidores, o mercado imobiliário surgiu como a tábua de salvação para investir e capitalizar rapidamente. A tentação de comprar casas relativamente baratas, transformá-las com pladur e mobiliário escandinavo e vendê-las ao triplo do valor, alastrou e transformou o mercado numa vertigem capitalista, especulativa e absurda. Pedem-se hoje meio milhão de euros por apartamentos que há uma década atrás valiam menos de metade. Obviamente que os famosos vistos Gold, que o estado incentivou sem prever os danos posteriores, alavancaram o disparo dos preços e empurraram a classe média para periferias cada vez mais longe dos locais de trabalho.

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Todos têm direito a investir e ganhar dinheiro. Mas quando isso é feito à custa da habitação e se transforma um dos direitos primordiais numa tábua rasa e se atiram as pessoas para a rua, indigna e inaceitavelmente, a pergunta que se impõe é, que Estado é este, que é tradicionalmente o melhor cobrador e o pior pagador, e que mais permite, com grosseiras omissões governativas, que a casa de morada de família se tenha tornado no mais apetecível e paradoxalmente odioso produto de investimento e especulação?

Se tantos acusam o estado de olhar para os cidadãos como meros contribuintes, que dizer desse mesmo Estado quando não protege a habitação e o direito à mesma. Aqui chegados todas as medidas em curso são paliativas, tardias e insuficientes. Uma vez mais não se olharam os problemas de frente, não se acautelaram os desvios que se iam dando a conhecer e depois, como quase sempre, após o fogo trancas à porta. Somos um país que insiste em errar e mesmo assim aplaude quem se vitimiza e alardeia fábulas. Melhor incentivo a emigrar dificilmente haverá.

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