“Estorial, com ou sem história”, por José Caria Luís
Volvidas que são mais de seis décadas, pergunto-me como foi possível a uma professora, idosa e de frágil aparência, lidar com aquela turba, de quase quarenta alunos, da 1ª à 4ª classe, composta por gente turbulenta e mal formada.
De tez esbranquiçada, mas cuidada, a senhora arranjava-se bem. Rosto sempre protegido por bons cremes, com dois toques de rouge nas faces, mais parecia uma boneca de porcelana, mas a sua aparente fragilidade era compensada pelas três armas, que utilizava com frequência: a cana-da-índia, a régua e os duros ossos das falanges. Dia em que ela não malhasse p’raí em 30% da rapaziada, nem era dia para ela nem tampouco para a malta. Sim, porque, de parte a parte, era tudo uma questão de hábito. Mas, se assim não fosse, como poderia a senhora levar a cabo tão espinhosa tarefa?
De vez em quando, a fim de aligeirar o pesado ambiente que pairava na sala de aula, a professora da Masculina costumava ir até ao átrio, para, em conjunto com a auxiliar, entabularem conversa sobre a habitual temática, que teria a ver com as novidades da terra. Ora, como seria de esperar, a rapaziada não era competente para ser deixada sozinha numa sala de aula, por isso, para evitar que por lá se instalasse o caos, a mestra escalava um dos alunos seus prediletos, a quem atribuía competências que visavam evitar, ou minorar, alguma desordem. O aluno que ficava de atalaia no gigante quadro de ardósia, de giz em riste, era escolhido a dedo. Seria filho de algo, mas, quase sempre, o nomeado era uma fraca figura, que nem tinha físico para apanhar uma constipação, quanto mais dois tabefes dos matulões prevaricadores, cujos nomes iam surgindo em catadupa. Estes bem o avisavam, prometendo ao puto uma punhada no queixo se, acaso, os seus nomes não fossem eliminados da tela, mas o rapazinho, que era nhurra ou masoquista, e porque tinha que apresentar serviço, a princípio não cedia. Porém, quando algum calmeirão, dos já sinalizados, fazia menção de se levantar e caminhar na direção do escriba, lá se ia a identidade dos mangas e, agora, só os nomes de alguns pequenotes figuravam no quadro negro.
Na época, travava-se a Guerra da Coreia, talvez por isso o tema mais em voga fosse a guerrilha de aviões de papel, que voavam pelos ares em todas as direções. Mas, quanto a mim, este seria um mal menor, comparando com a grosseria da horda que, ora pulava através das janelas para a rua e retorno, ora urinava nos tinteiros embutidos nas carteiras.
Acabado que estava o diálogo entre a mestra e a auxiliar, onde se havia escalpelizado, de fio-a-pavio, a vida mundana da aldeia, era a altura para o retorno da velha senhora ao cenário que antes fora de guerra, mas, agora, dir-se-ia ser um imaculado local de paz e meditação. Se, de entre as quase quatro dezenas de pupilos, somente quatro pequenotes tinham prevaricado, então era motivo de regozijo para a nossa professora. Se em casa, aos seus alunos, não lhes era dada educação, ainda bem que aqui vieram parar ao reduto da sabedoria, pese embora alguns destes bacanos já terem mais de 12 anos e, alguns deles, nem tenham sequer feito a 3ª classe.