Os vendilhões do Templo

Por João Fróis

O evangelho de São João relata o acontecimento em que Jesus, por alturas da Pessach, a páscoa judaica, visitou o Templo em Jerusalém e aí chegado encontrou vendedores de bois, ovelhas e pombos e cambistas. Fez um chicote de cordas e expulsou todos acusando-os de tornar um local sagrado num antro de ladrões através das atividades comerciais.

Esta parábola religiosa mostra o desagrado de Jesus Cristo com a profanação do lugar espiritual e de oração pelas atividades mundanas. Que diria agora o fundador da igreja perante os inúmeros escândalos que lamentavelmente varrem a instituição milenar por todo o mundo?

Não cabe aqui julgar quem quer que seja. Os julgamentos têm sede própria nos tribunais civis e no caso em particular, igualmente dentro da esfera do direito canónico. Mas face a tão degradantes exemplos de quem deveria cuidar do que profanou, temos de nos insurgir e mostrar a firmeza de caráter que a outros faltou.

Tenho formação católica e reconheço a bondade da mesma na minha formação como indivíduo, na minha consciência do mundo e na construção de uma identidade ética, moral e de cidadania. A mesma permitiu-me a liberdade de pensamento crítico e a perceção pelos ensinamentos da história, dos males da Igreja dos homens, tantas vezes castradora e inquisidora ao invés de inclusiva e fomentadora da caridade e compaixão, pedras basilares do edifício que Jesus entregou a Pedro.

Mas se o fechamento que o Vaticano sempre instituiu foi sendo aceite como modus operandi dentro da Igreja, já os silêncios cúmplices com comportamentos abusivos perpetrados por milhares de padres por todo o mundo ao longo de décadas, surge como um abalo sísmico que ameaça destruir todo o edifício da Igreja de Jesus Cristo. Se as imensas catedrais sobrevivem incólumes à passagem do tempo, já os pilares morais da instituição religiosa ameaçam ruir face a tamanhas e sucessivas afrontas intestinas.

Em Portugal vivemos por estes dias o choque face à revelação dos dados da comissão independente, liderada por Pedro Strecht e que revelou cerca de 4800 abusos de crianças e adolescentes no seio da Igreja católica, baseadas em 512 denúncias recentes sobre factos ocorridos nas últimas décadas. Estima-se que a idade média das crianças abusadas seja de 11,2 anos. Mas olhemos para alguns dados deste flagelo social e moral. Os abusos ocorreram maioritariamente nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado, tendo a partir daí baixado na sua incidência. Os distritos onde se registaram mais casos, foram Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria, tendo os abusos ocorrido em grande parte em seminários e colégios religiosos, mas também nos altares, confessionários e casa paroquiais. 97% dos abusadores foram homens e destes 77% eram padres. Em 47% das situações o abusador fazia parte das relações próximas das crianças abusadas. As vítimas foram abusadas mais do que uma vez em 57% dos casos e 28% foram abusadas por mais de um ano. Os abusos foram no caso das crianças masculinas de sexo anal, manipulação genital e masturbação, sendo no caso das meninas maioritariamente de insinuação.

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Para termos noção da dimensão da besta atentemos que em 77% dos casos a vítima nunca apresentou qualquer queixa e que apenas em 4% das situações houve queixa judicial. A montanha das indignidades pode ser bem maior do que se supõe.

Mas este drama intolerável dentro de uma instituição que deveria ser um exemplo de moral e ética, ocorreu em todo o mundo católico, manchando sem apelo a Igreja e criando um distanciamento crescente com as comunidades religiosas desses países.

Nos EUA foram contabilizadas mais de 11 mil queixas de abusos em 2004, tendo na sua maioria sido resolvidas através de acordos extrajudiciais e indemnizações. Na Austrália foram reveladas mais de 4 mil denúncias entre 1950 e 2010 por cerca de 7% dos padres do país.

Em França foram identificadas mais de 200 mil vítimas, crianças e adolescentes, de cerca de 3 mil padres em 70 anos. Na Alemanha foram elencados mais de 1500 padres abusadores em igual período de tempo. Em Espanha e Inglaterra foram igualmente revelados milhares de denúncias de abusos no seio da igreja.

O que agora se percebe é um inqualificável encobrimento pela hierarquia religiosa, abafando os escândalos e promovendo a mudança de paróquias dos padres problemáticos e com historial comprometedor. Não resolveram os problemas, antes os esconderam dentro da sua esfera sigilosa, não atuando disciplinarmente sobre os abusadores e permitindo que os mesmos continuassem com as suas hediondas ações noutros destinos.

As mais recentes afirmações dos mais altos responsáveis da Igreja portuguesa, nomeadamente D. José Ornelas, presidente da conferência episcopal, mostram uma incapacidade gritante para lidar com tamanha vergonha e uma incompreensível falta de sensibilidade e compaixão para com as vítimas, em discursos titubeantes, embaraçados e comprometedores como os do bispo de Beja. Entre listas que não revelam, dados que não assumem e processos que deixam arrastar-se, assistimos incrédulos a atitudes que ferem a moral, a ética e o respeito pelos crentes por quem deveria desde sempre ser o maior garante das mesmas. Ao abraçarem a vida religiosa, cada um dos indivíduos que decidiram ser padres deveriam a todo o momento questionar-se, mais do que sobre a sua fé, sobre a sua aptidão para o exercício de tal ministério espiritual e da sua capacidade para se absterem das atividades carnais que a Santa Sé não permite, ao invés de outros movimentos religiosos que aceitam o casamento dos seus párocos. Não o fazerem reiteradamente revela o pior da natureza humana, escondendo a ilicitude e a indignidade sob a capa salvífica da instituição Igreja no seu todo. Igreja que mais não fez durante décadas do que Pôncio Pilatos perante as acusações a Jesus, lavou as suas mãos face a tão sujas águas e alienou-se de males que deveria ter morto à nascença.

Estamos assim perante uma crise sem paralelo no seio da Igreja. Se a crise de fé numa comunidade de fiéis assoberbados por crises materiais incessantes num mundo complexo e de enorme incerteza, já era uma preocupação imensa, o impacto deste sismo de indignidades será um desafio ainda maior e que em última instância poderá abalar a Santa Sé e promover uma revolução até agora adiada. O que estes lamentáveis episódios revelam em toda a sua extensão, são a falência moral de uma civilização e a vitória do mal sobre o bem. A humanidade insiste na guerra, no egoísmo, na obtenção do luxo e prazer e esconde a miséria material e ética, a degradação dos ecossistemas e a natureza impura e condenável dos que elevou a arautos da moral e virtude. Alimentam-se assim os descontentes, engrossam-se as fileiras de excluídos e extremistas, abrindo brechas sem igual nos edifícios da paz e esperança universais. O futuro é cada vez mais uma incerteza face aos caos.

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