63 anos, Juiz de Direito, casado com a Leonor, pai do Gonçalo e do Nuno. Vive no Cartaxo.
Às 8h45 do dia 27 de junho de 1956 a enfermeira/parteira “menina Lurdes” tinha em mãos um bebé acabado de nascer no Cartaxo, mais precisamente, no nº 82 da Rua José Ribeiro da Costa, de nome António Gaspar, que ali nasceu, cresceu e onde volta, com frequência, para ver a casa, por fora. “Frequentemente passo por lá para recordar e, todos os anos, tiro uma fotografia no dia do meu aniversário, à porta da casa”, revela o juiz.
Eu sou
Um espírito aberto. Exigente. Uma pessoa que tem sentido de abrangência, sinto que sou mais perfecionista, procuro a perfeição e vou cultivando muito a sabedoria. Sou uma pessoa com sentido de humor.
Quando fala dos seus tempos de criança e jovem percebe-se que são boas as recordações daqueles tempos. “A minha infância desenvolveu-se naquela zona que tinha um elemento fundamental agregador de todas as crianças que ali nasceram, que era a Sociedade Filarmónica Cartaxense”, onde via televisão, jogava jogos tradicionais e onde começou a sentir “o que era viver em comunidade. Foi ali que comecei a dar os meus primeiros passos na convivência em grupo, em comunidade. Aprendi a respeitar, a olhar para os outros exatamente como nosso semelhante, a ter efetivamente as noções do que é a participação, do que é a partilha, do que é o desvanecer do nosso individualismo e a ter a noção do que é um espaço comum”.
Eu gosto
Do amor. Da vida. Da boa disposição e do bom humor, de pessoas com sentido de humor. Da alegria, da satisfação e da felicidade. Que as pessoas se sintam bem. Gosto muito da minha mulher e dos meus filhos e dos meus amigos, especialmente dos de infância. Da minha terra.
Na escola era um aluno médio, “tinha preocupação de estar atento, resultado da minha educação familiar”, que acabou por passar aos filhos, que “têm um cunho comum que eu e a mãe lhes conseguimos transmitir, que é exatamente a solidariedade, a amizade, o amor, a estima, a consideração, a entreajuda e a preocupação de um com o outro”. Da escola primária recordará para sempre o professor Herculano, que “foi um excelente professor, um grande pedagogo. Era um homem com um poder enorme de influência boa. Era uma pessoa muito exigente, que tinha um rigor naquilo que era efetivamente essencial”.
Eu quero
A permanência e a perfeição da paz no mundo. Que o meu País se desenvolva e se liberte das amarras que tem hoje, sobretudo nos aspetos sociais e comunitários. Um aperfeiçoamento no conceito de família, na escola e na proteção na terceira idade.
Terá sido uma das pessoas a incentivar o agora juiz a seguir os estudos e tirar um curso superior. Já no Liceu de Santarém, onde ingressou após o (agora chamado) ensino básico, tinha a irmã, nove anos mais velha, como grande impulsionadora do seu percurso escolar. “Os meus pais sempre tiveram essa preocupação com os resultados escolares, mas tive sempre a minha irmã, que sempre acompanhou de perto a minha vida. Ela foi um fator decisivo na formação da minha personalidade. Foi uma pessoa que esteve sempre comigo, que me transmitiu muitos valores”.
Eu não sou
Hipócrita, que é uma coisa que detesto. Não sou de visão simplista. Não sou vaidoso nem invejoso.
Apesar de ter na ideia a medicina, “a vontade de ser médico foi quebrada com o 25 de Abril, altura em que tinha 17 anos”, conta. Dispensado do serviço militar e sem se ter inscrito no serviço cívico para poder ingressar na Universidade, acabou por trocar os hospitais pelos tribunais, depois de um estágio, não remunerado, indicado pela irmã, que trabalhava no Ministério da Justiça. “Entrei no mundo dos tribunais, a 5 de maio de 1977, no palácio da justiça em Lisboa. Comecei a minha carreira aí e foi aí que também decidi ir estudar direito”. Foi também aí que conheceu a mulher com quem havia de casar, seis anos mais tarde, e com quem viria ter dois filhos, e que é “uma companheira de há 34 anos”, a quem António Gaspar também muito deve pelo seu percurso de vida “sem revezes”.
Eu não gosto
De injustiças. De maus políticos nem de promessas vãs.
Não gosto de vaidosos nem de mentirosos.
Dois anos após o casamento, e três anos depois de ter iniciado, a trabalho, uma comissão de serviço para fundar o Centro de Estudos Judiciários, onde esteve cerca de dez anos e onde trabalhou com dois homens que o marcaram “profundamente” – Laborinho Lúcio e Armando Leandro –, António Gaspar entra no curso de direito que havia de interromper um ano depois, com o nascimento do primeiro filho, “para dar apoio à família”. Terminou o curso em 1990 e, conta, “depois colocou-se saber o que iria fazer, mas a minha ideia era sair de Lisboa e regressar às origens, porque me faltava exatamente a coincidência entre a minha personalidade e a minha forma de estar na vida e o meio em que eu vivia – num prédio com 29 andares eu conhecia cinco a seis pessoas, e eu tenho necessidade de comunicar, de interagir com as pessoas e a cidade de Lisboa não permite isso. Eu tinha necessidade de participar: nas associações, em grupos de amigos… isso sempre me fez muita falta”. Ir para juiz permitia-lhe ir para a província e um dia fixar-se onde quisesse, como veio a acontecer – depois de passar por outras comarcas, está atualmente em Santarém, comarca que já presidiu e que diz ter sido“uma experiência muito rica. Na altura, acho que dei a possibilidade de o tribunal se abrir um pouco mais à comunidade”, partilha o juiz, que não se considera uma pessoa conservadora, embora respeite “um determinado tipo de valores e de princípios que considero que são intemporais: o respeito pela vida, o respeito pelo semelhante, acho que são valores que vão perdurar”. Contudo, “estou aberto à mudança, com criatividade, no sentido de que ela vá contribuir para a evolução do homem, da sociedade e da comunidade”, diz.
Eu não quero
Guerras, nem crimes como a violação doméstica, crimes sexuais contra menores e o tráfico de seres humanos. A proliferação de armas nucleares. A Europa a desistir de si própria. O nosso País tão dividido como está, com o interior deserto e o litoral superlotado. Não quero continuar a assistir ao abandono do nosso mar. Que a liberdade acabasse.
Gosta muito do que faz, ainda que seja um trabalho complexo que exige tempo, organização, estudo, lucidez, reflexão, ponderação “e que é um trabalho permanente”. A poucos anos de entrar na reforma, “continuo a ter a mesma vontade, a mesma motivação (se calhar até mais), com entusiasmo, com dedicação e com um sentido, cada vez maior, de responsabilidade”, muito devido à “multiplicidade da vida. A vida hoje é muito mais complexa e nós, no tribunal, trabalhamos com pedaços de vida”. Olhando para trás, de uma maneira geral, “sinto que tenho sido justo, porque essa conclusão retiro-a do trabalho que emprego e da exigência que tenho em cada caso que analiso”.
O perfil de António Gaspar foi publicado na revista DADA nº71, de dezembro de 2017. Foto em destaque ©Vitor Neno