Vanda Matias, 50 anos, enfermeira, mãe do Vasco. Vive no Cartaxo.
Enfermeira há 26 anos, Vanda Matias sente-se muito realizada naquilo que faz. “Não trocava a enfermagem pela medicina, de maneira nenhuma”, garante-nos depois de nos contar que, ainda miúda, o que queria era ser médica. Na altura estudava no Colégio Marcelino Mesquita, no Cartaxo, de onde é natural, e foi na Escola Secundária do Cartaxo que percebeu que dificilmente conseguiria ter média para entrar em medicina. Sempre foi boa aluna, mas a vida de adolescente ‘roubava-lhe’ algum tempo para conseguir as tais notas de excelência necessárias ao curso. Uma coisa era certa, queria seguir a área de ciências e, para além disso, “tinha de ser qualquer coisa ligada às pessoas. Eu queria ajudar as pessoas, tratar de pessoas”, diz. Começou a aperceber-se da enfermagem, estava no secundário na área de Saúde. Era um curso com uma forte componente prática o que também lhe agradou.
Eu sou
Corajosa, valente e resiliente. Sou pontual, trabalhadora e muito faladora.
Com a possibilidade de tirar o curso de enfermagem em Santarém manteve-se sempre a viver no Cartaxo, o que também foi bom, porque diz que nunca quis ir para Lisboa. Gosta de cá viver. Já gostou mais: “o Cartaxo podia estar melhor e ter mais coisas”, reconhece. Mas é cá que tem os pais, foi cá que o filho cresceu e é cá que ele quer viver. Depois, já conhece as pessoas, os lugares… Na verdade, Vanda viveu cá sempre. Não precisou de sair para ir estudar, como aconteceu com muitos dos seus amigos, e terminado o curso foi por cá que ficou, porque arranjou colocação no Hospital de Santarém. Fez o curso e teve a sorte de ser logo chamada para o Hospital de Santarém, assim como foi também chamada para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, “mas eu quis ficar aqui, nunca quis ir morar para Lisboa, eu preferia coisas mais pacatas, e gostava de morar no Cartaxo”.
Há 26 anos que entrou ao serviço no Hospital de Santarém, no bloco operatório. Foi o serviço que escolheu: “gosto de cirurgias, sempre gostei, e de anatomia também e tive sorte. Na altura em que entrei precisavam de pessoas no bloco. Fui para lá e correspondeu muito às minhas expectativas, eu ali aprendi tudo e devo muito aos meus colegas, que me apoiaram muito”.
Eu gosto
Gosto muito de sinceridade. Gosto de pessoas corajosas e batalhadoras e que lutam por aquilo que querem ser.
“Gosto muito do que faço”, diz, e está sempre a aprender. Nunca fez especializações, mas há sempre congressos e formações, para além de aprender também com os colegas, no dia a dia de trabalho. Atualmente, é chefe de uma das equipas do bloco operatório. “Apesar de não ter nenhuma especialidade, estou sempre a par do que se faz no bloco operatório, nas diferentes áreas médico-cirúrgicas”, garante. E percebe-se que gosta de saber mais, gosta de evoluir. Em tudo na vida, não só no trabalho. E é muito determinada. Faz por alcançar os objetivos a que se propõe, não é de desistir, mesmo que isso implique algum sofrimento.
Mais do que uma vez a saúde e a vida pregaram-lhe partidas e obrigaram-na a ser forte e a lutar para ultrapassar as situações. “Nós não podemos desistir. Querer é poder!” Foi assim quando sofreu uma depressão, por sobrecarga de trabalho, que começou por desvalorizar, até chegar ao ponto de já não conseguir dormir: trabalhava, estudava (a completar o curso com a licenciatura), numa altura em que o filho ainda era bebé e Vanda ainda geria toda a emoção e mazelas da gravidez e do pós-parto, nomeadamente de uma diabetes gestacional que teimou em deixá-la… “Foi uma altura muito complicada da minha vida”, recorda. Mas com o apoio da família, que não se cansa de referir, e a sua força de vontade conseguiu dar a volta.
Eu quero
Ter saúde e ter trabalho, com isto eu tenho tudo aquilo que eu quero.
Terá sido o desporto a salvá-la, não só de uma depressão mais profunda, mas também da diabetes. Também seria o desporto a pregar-lhe mais uma partida, alguns anos mais tarde, mas que mais uma vez serviu para provar a sua força, coragem e resiliência. Aconteceu há poucos meses, mas agora, antes de voltarmos a este acidente que a deixou parada em casa cerca de três meses, contamos-lhe como o desporto entrou na sua vida por volta dos 35 anos, comprovando o que há muito dizem os especialistas acerca dos benefícios do exercício físico.
Vanda sempre gostou de desporto. Chegou a competir em Atletismo quando era miúda, até esteve na seleção distrital, e também andou na ginástica, no Ateneu Artístico Cartaxense, mas nessa altura teve de deixar o desporto porque adoeceu e esteve algum tempo em recuperação. Muitos anos passaram até que voltou à prática desportiva, desta vez para se tratar da tal depressão e dos problemas da diabetes. Foi para o ginásio e começou a fazer caminhadas e daqui à corrida foi um pulinho. Até aos dias de hoje, os treinos e a competição mantêm-se parte integrante da sua vida. Deixou de ir ao ginásio, porque é ao ar livre que gosta de fazer exercício. Afinal, passa muitas horas seguidas fechada no bloco operatório e quando sai, por mais exausta, o que lhe apetece é ir correr. “Para mim, o desporto é liberdade. No exterior, estamos a cultivar o físico e a mente”.
Aos 44 anos, Vanda começa a treinar com o grupo “Cartaxo Night Runners”, que ainda se junta às segundas-feiras no Cartaxo para ir correr. “No início sofri horrores atrás deles, mas nunca desisti. A corrida requer muito treino e é muito mais fácil em grupo”. Depois acabou por ir treinar com a Escola de Atletismo do Cartaxo e iniciou-se nas provas de estrada, até que começou a ouvir falar do trail, mas achava que eram muitos quilómetros, até ao dia em que experimentou uma prova de trail no Montejunto e “apaixonei-me”. “Desde os sítios por onde passamos, o ar puro, a camaradagem, o ambiente, é tudo. E não é só correr: força muscular, braços, perícia, saltar, subir e descer com cordas. É muito mais completo em termos físicos. E nesta idade tenho de treinar a resistência, não a velocidade”, conta, acrescentando que deixou o ginásio, mas faz alguns exercícios de reforço muscular em casa, porque é preciso para a corrida, para evitar lesões.
Eu não sou
Invejosa. Não sou gulosa.
Mas nada como o ar livre. “Nós vamos para a serra e temos tudo, a única desvantagem é que sou mulher e tenho algum receio de treinar sozinha. Tenho mais companhia para treinar em estrada, por exemplo na Escola de Atletismo. Eu sou amadora…” Mas também vai para a Serra de Montejunto e para o Trilho dos Cágados e para o Falcão. Quando arranja companhia, o que nem sempre é fácil, também por trabalhar por turnos, lá vai ela e se não arranjar tem o pai que a acompanha, de jipe, de mota… Até chega a levar binóculos para a poder ver à distância.
O que é certo é que Vanda sente-se uma pessoa muito mais resistente a nível físico mas também emocional. “Ajudou-me em tudo”, diz e garante que “nos treinos, depois de um dia de trabalho, saio de lá nova”.
É competitiva e fica contente quando consegue terminar as provas num bom lugar, até porque tem conseguido vários pódios e primeiros lugares, no seu escalão, mas relativiza os prémios que diz dependerem de muitos fatores: local, presença de atletas profissionais… “Eu gosto de treinar, sou competitiva e treino para evoluir.” E não pensa parar tão depressa. Aos 50 anos, com uma vida profissional exigente – em média trabalha cerca de 50 horas semanais, cumprindo tarefas de alta responsabilidade em que o erro poderá custar uma vida ou complicações graves na saúde de quem trata – Vanda diz que vai continuar a treinar “enquanto o esqueleto aguentar…”.
Eu não gosto
Da intolerância e de pessoas que se acham mais do que as outras. Não gosto de pessoas acomodadas.
Mesmo depois de um grande susto que recentemente apanhou, durante os treinos e sobre o qual já falámos mais atrás. Uma queda aparatosa de bicicleta, quando se preparava para a Taça de Portugal de trail, no final do ano passado, provocou-lhe fraturas graves no braço direito, com um diagnóstico médico nada favorável. “Quando me operaram o objetivo dos médicos era que eu conseguisse levar a mão à boca, porque a minha fratura foi muito, muito feia. Teve de levar uma placa com oito parafusos no braço, devido às fraturas do rádio e da cabeça do rádio.
Disseram-me que eu, provavelmente, não poderia voltar a trabalhar no bloco”, lembra. Mas nem por isso desanimou, até porque nunca pôs a hipótese de ficar com alguma limitação. Reconhece a sorte de ter sido operada pelos melhores médicos – “sem eles eu não conseguia ter regressado” –, mas depois, “foi a minha parte, que nem cheguei a ir à fisioterapia, fiz eu a mim própria”, com a ajuda da internet e o acompanhamento dos médicos, que assistiam aos progressos, conta.
Eu não quero
Dependências, nem pessoas más na minha vida. Não quero mentiras, nem violência.
Mais uma vez, demonstrou a força e determinação que a caracterizam. Apesar das “dores horríveis” e da “batalha” diária em casa, sem conseguir mexer nas coisas, insistiu nos exercícios de fisioterapia e até mesmo naqueles que fazemos diariamente, como lavar os dentes, dobrar camisolas… Nunca desistiu e três meses e meio depois voltava ao bloco operatório para trabalhar. A pouco e pouco, também os treinos voltaram à rotina e até já obteve um ótimo lugar numa competição. Agora é seguir em frente. Sente que tem uma maior capacidade para o sofrimento físico do que tinha antes de correr e muito mais resiliência e até de resistência à dor, dando o exemplo da recente lesão no braço. Mas também se sente cada vez mais confiante e sortuda, por ter uma família que a apoia, um filho espetacular, que desde pequeno é o seu grande companheiro, e um trabalho de que gosta muito. Os treinos e as competições vêm completar essa felicidade, pela saúde, pelo bem-estar e pela diversão que lhe proporcionam.
O perfil de Vanda Matias foi publicado na Revista DADA nº92, edição de junho de 2021