Retratos de um povo orgulhoso das suas raízes
A Festa dos Fazendeiros é um evento de cariz popular e etnográfico que já se realiza há mais de meio século. Um marco importante na freguesia de Pontével que recria os tempos de 1900 e as vivências e tradições deste povo, orgulhoso das suas raízes
A Festa dos Fazendeiros é um evento de cariz popular e etnográfico que já se realiza há mais de meio século. Um marco importante na freguesia de Pontével que recria os tempos de 1900 e as vivências e tradições deste povo, orgulhoso das suas raízes.
Estávamos em plena pandemia quando fomos até Pontével ao encontro de vários pontevelenses que vivem esta festa desde a infância para fazer esta reportagem que foi publicada em abril de 2021, assinalavam-se os 65 anos da Festa dos Fazendeiros. Hoje, em vésperas de se realizar a 44ª edição da Festa dos Fazendeiros, já este domingo 16 de abril, partilhamos esta reportagem na integra.
Realizada, nas últimas décadas, de dois em dois anos, calhava este ano fazer a festa que enfeita as ruas de Pontével e leva as pessoas à rua para assistir ou participar no tradicional cortejo com carros temáticos, alusivos às atividades agrícolas, económicas e sociais da freguesia, composto ainda por grupos que acompanham os carros complementando a história ali representada.
Inicialmente realizada no domingo de Páscoa, a Festa dos Fazendeiros de Pontével começou, em 1956, por ser um marco importante na vida da freguesia, sendo ponto de encontro de agricultores e fazendeiros que, para além de recriarem os tempos dos seus pais e avós, também naquele dia, pela manhã, levavam o gado ao concurso de pecuária, realizado por largos anos, até dar lugar à exposição canina, anos mais tarde, mas que atualmente também já não faz parte do programa da festa, tal como fora idealizado nas primeiras edições, pelo primeiro presidente, eleito democraticamente, da Junta de Freguesia de Pontével, e, também, grande dinamizador da cultura, do associativismo e fundador do Jornal a Voz de Pontével, João da Silva Pimenta.
Ao longo de mais de meio século, a festa dos fazendeiros foi sofrendo alterações, não só ao nível do programa, mas também da organização e até da sua periodicidade e data, que, entretanto, passou para o domingo de pascoela. Inalterado mantém-se o apelo à participação dos pontevelenses neste evento que celebra as vivências e tradições deste povo, orgulhoso das suas raízes. Esta festa “será sempre um vivo cartaz de propaganda da nossa aldeia, se os pontevelenses persistirem evidentemente na sua realização”, lia-se num artigo dos anos 50 do jornal A Voz de Pontével. Como tal, as pessoas vêm respondendo à chamada e mantêm, assim, salvaguardada e preservada a memória das suas gentes e tradições, ao longo de gerações.
É sempre um dia de festa!
Jorge Pisca
Muitos dos que hoje são avós e já levam os netos a participar já participavam nas primeiras edições, com os seus pais e avós. Jorge Pisca, atual presidente da Junta de Freguesia de Pontével, conta que participou no cortejo “logo em pequeno”. “O meu pai participou na primeira edição, e os meus filhos também já participaram e é giro ver os avós, os filhos e os netos juntos no cortejo, seja no mesmo grupo seja em grupos separados”, diz. Recorda os primeiros anos em que o cortejo se fazia com carroças e a pé, “agora são carros”, mas a família continua a juntar-se “uns dias antes” e “tem gosto de estar a arranjar o carro”. Ao longo de muitas edições, os melhores carros eram premiados, o que causava alguma competição entre os participantes, que sempre primaram por cumprir a rigor o quadro que representavam no cortejo.
Um dia importante para Pontével
“É sempre um dia de festa!”, frisa Jorge Pisca. E serve para lembrar os tempos de antigamente: as artes e ofícios e os trabalhos e rotinas do campo e da sociedade. É também uma boa forma de mostrar aos mais novos como era a vida, o trabalho e as tradições daqueles tempos, assim como a quem vem de fora para assistir, num dia em que também marcam presença as autoridades religiosas e políticas, até o governador civil do distrito vinha a Pontével, neste dia, em tempos passados.
Realizada já na primavera, com os campos floridos, e durante a Páscoa, este dia era marcado também pela feira de gado e concurso de pecuária. “Quase toda a gente tinha carroça e tinha gado para consumo e para venda e todos gostavam de preparar o melhor gado e levá-lo a ganhar o concurso”, lembra Jorge Pisca. Ao logo de 27 edições, o concurso de pecuária só por três vezes não se realizou, escrevia João da Silva Pimenta numa das edições dos anos 90 da Voz de Pontével. Nessas edições, compareceram uma média de 49 fazendeiros por certame, cada um com uma média de 88 cabeças de gado, entre vacas leiteiras, mulas, burros, cavalos, ovelhas, cabras… No início dos anos 90, passou a realizar-se, em vez do concurso de pecuária, uma exposição de cães, que também havia de sair do programa, voltando o gado a marcar presença na festa, nas últimas edições, com uma exposição do gado, mas já sem concurso.
A estafeta pedestre Santarém-Pontével era outra das atividades deste dia, com a chegada dos atletas à hora de almoço, mas deixou de se realizar há cerca de duas décadas, mantendo-se uma outra atividade que envolve cada vez mais pontevelense nos enfeites das frontarias das casas: o Concurso das janelas. Foi na terceira edição da festa, cujo “êxito excedeu toda a expetativa, superando de longe as organizações anteriores”, como se lê numa edição da época do jornal A Voz de Pontével, que começaram a ser ornamentadas as “lindas janelas” da terra. Desde então, e até hoje, como nos confirma José Inglês da Ponte (67 anos), da comissão organizadora da festa e responsável pela decoração das janelas, os pontevelenses fazem gosto em decorar as janelas e toda a frontaria da casa com artefactos antigos em exposição, como alfaias agrícolas e outros objetos antigos.
É sempre um delírio! Eu tenho uns nervos nessa noite!
Rosário Gonçalves
Rosário Gonçalves, 60 anos, e Júlia Lopes contam, animadas, como são os dias de véspera da festa dos fazendeiros e dão toda a importância à decoração das frentes das suas casas e, caso necessário, chamam à atenção aqueles que não o fazem. “No último ano, na minha rua enfeitaram-se as casas todas”, diz Rosário, queixando-se de ter muito trabalho a decorar a sua casa, “porque tem uma frente grande”, mas enfeita sempre toda a frontaria. Se for preciso, entre os arranjos finais para o desfile e para a decoração, não se deita de noite. “É sempre um delírio! Eu tenho uns nervos nessa noite!”, revela. Já Júlia, com 83 anos, participante da festa desde as primeiras edições, diz que se levanta às seis horas da manhã para enfeitar a sua frente.
Recriação dos tempos idos da vida da freguesia
Ambas guardam memórias das muitas edições da festa dos fazendeiros, assim como muitos prémios dos carros que levavam ao desfile. Qualquer uma delas já representou diversos quadros vivos no desfile. Rosário recorda o quadro do serão de natal, que um ano recriou: “Cheguei à tribuna a fritar os velhozes e ali parámos a dar velhozes aos convidados da noite de natal que se aproximavam do carro”. Só lamenta que já não houvesse muita gente a assistir, pois o cortejo acaba por ser demorado e, segundo a pontevelense, “nunca sai à hora que devia sair”. Não é fácil à comissão organizadora gerir tantos carros à chegada à Igreja, quando todos se juntam antes de iniciar o desfile, porque é naquele momento que se fica com a ideia certa de quem está e do que cada um vai representar, sendo necessário ordenar os carros e os grupos que desfilam a pé, alguns ajudam a complementar os carros.
São sempre muitos carros e muita gente a representar fielmente os quadros vivos, que podem ir desde o ciclo do pão aos variados trabalhos do campo, da vinha e às searas, passando pela matança do porco ou uma ida ao barbeiro. Desde que consigam representar fielmente os quadros, desde a roupa até aos utensílios de trabalho, todas as artes, ofícios, costumes e tradições comuns no início do século passado podem ser retratadas. E assim é.
Júlia Lopes lembra que a irmã uma vez levou um carro de seara de trigo, e para a reproduzir esteve toda a noite com as filhas a enfeitar o carro, de forma a levar tudo direitinho, sem tombar, obrigando a usar barro para fixar os pés do trigo que, por sua vez, se enterravam na areia que colocaram a revestir o chão do carro. E, lembra, também, quando fez o lagar: “até guardei uvas na arca para aquele dia haver uvas para pisar”. Rosário Gonçalves e Júlia Lopes contam que foram muitos os quadros vivos que representaram no cortejo, como fazer e cozer o pão, a adega, o forno de cal, o poço, a eira e a descamisada do milho, o arrozal, com o rancho das raparigas atrás do carro, a ida e a vinda dos senhores à Feira dos Santos, o forno comunitário, a taberna… Alguns dos quadros acabam por ser repetidos, porque “os costumes são os mesmos e a agricultura também”, mas também as figuras da terra são lembradas, como o funileiro, Alberto Lata ou o António da Mila, da loja situada perto do Rio da Fonte. Este último, recriado num carro a preceito por Rosário, que contou com figuração. Rosário gosta de levar grupos grandes. “Fiz as ceifeiras, que à primeira volta levavam a foice e à segunda já traziam o trigo à cabeça”, tal como representou o arrozal, o ciclo do pão, a ida à fonte, aos domingos, com as raparigas a envergarem um avental mais bonito e trabalhado e um lenço de cachené às costas – já as mães levavam os lenços à cabeça – e os rapazes que apareciam de bicicleta.
O mais custoso é a roupa, principalmente as calças dos homens, porque já não há o cotim antigo.
Júlia Lopes
Nada pode falhar e rigor acima de tudo
Lembranças de outros tempos que Rosário gosta de representar e de ver representadas a rigor, com todos os pormenores. Nada pode falhar. Daí que o trabalho da maioria dos participantes seja imenso. “O mais custoso é a roupa, principalmente as calças dos homens, porque já não há o cotim antigo e agora começamos a fazer com zuarte (tecido azul ou preto de algodão)”, revela Júlia Lopes, contando sobre a dificuldade de encontrar tecidos e roupas para tanta gente. As coisas vão passando de uns anos para os outros, mas há peças que têm de ser arranjadas ou feitas de novo e, para além das matérias-primas, é difícil encontrar quem as faça. Depois, diz Rosário Gonçalves, também não é fácil lidar com as raparigas mais novas que, em muitos casos, estão mais interessadas em ir com roupa bonita do que propriamente vestidas à época, nomeadamente com os trajes de trabalho.
Grandes entusiastas da festa dos fazendeiros, Júlia e Rosário fazem por estar sempre presentes, mesmo com tanta trabalheira. “Eu gosto muito, muito, da festa dos fazendeiros e tento sempre ir, mesmo que faça repetido, não quero saber”, diz Rosário, que há 32 anos, quando casou, participa na festa. E acrescenta: “Na minha lápide quero a minha fotografia vestida à festa dos fazendeiros”. “A gente gosta muito. É uma grande paródia!”, concorda Júlia, lembrando também o final do cortejo, quando muitos por ali ficam e juntam-se a comer e a beber… E, nesses momentos, acrescenta Rosário, quando perguntam aos mais novos se querem voltar na edição seguinte, “nunca ninguém diz que não quer”.
“Com a morte dos mais velhos e os mais novos a não pegarem na festa a mesma entrou em decadência ali durante uns anos até que se decidiu, por unanimidade, fazer ano sim, ano não.” “Houve quem criticasse”, continua Rosário, mas segundo nos diz no primeiro ano em que não se realizou a festa, decidiram criar quadros fixos em locais da vila escolhidos pela comissão organizadora, “para não morrer a festa dos fazendeiros”. No ano seguinte, recorda, “foi uma enchente na festa” e terá sido a partir daí que os grupos mais novos começaram a integrar o desfile, “foi também nesse ano que os quarentões começaram a fazer”.
Cheguei a participar em miúdo, com os meus pais e os meus tios.
Hernâni Rodrigues
Tradição passa às gerações mais novas
Passar o legado aos mais novos é a forma de manter a continuidade das tradições de um povo e há na generalidade dos pontevelenses essa vontade de passar esse legado às gerações mais novas, o que tem mantido, ainda que com algumas interrupções pelo meio, esta tradição viva há mais de seis décadas.
É o caso de Hernâni Rodrigues, 45 anos. “Cheguei a participar em miúdo, com os meus pais e os meus tios”, diz, acrescentando que agora participam os filhos, a mulher, a cunhada e a sobrinha e Hernâni fica-se pelo “apoio logístico”. Importa envolver os mais pequenos, que começam por achar graça a toda aquela encenação, mas que, com o passar do tempo, vão compreendendo melhor a história dos seus antepassados e a importância deste dia para se manter a memória das tradições da freguesia, acabando por ganhar o gosto por este evento, tal como os seus pais e avós.
Também Sérgio Costa diz que costuma participar na festa dos fazendeiros desde miúdo. “O meu avô sempre participou, primeiro na carroça e depois no trator, e o meu pai também participava”, diz. Agora, com 43 anos, também leva os filhos “para lhes passar esse gosto pela nossa tradição e para que eles continuem no futuro”. “Vamos todos juntos no mesmo carro, todos em família, algumas vezes repetimos… Fazemos coisas práticas que possamos fazer bem e que digam alguma coisa da terra”.
Para Edgar Costa, de 69 anos, agricultor, a escolha do quadro que vai representar é normalmente à imagem da sua profissão. “Participo sempre e sou dos que colaboro, sou agricultor e tento sempre representar alguma atividade do campo, da vinha ou na horta, num carro decorado” e, como não podia deixar de ser, “com os meus netos”. Para além dos participantes, outras pessoas há que apenas assistem ao cortejo, não faltam e fazem questão de levar os filhos e netos ou até mesmo “emprestá-los” para participar.
Contudo, e como dizia Rosário Gonçalves, mais atrás, em inícios dos anos 90 começou a haver algumas quebras e pouco interesse dos mais novos, que por essa altura tinham uma oferta cultural e social muito maior. Por essa altura, era a Junta de Freguesia de Pontével que organizava a festa que, anos mais tarde viria a passar para as mãos de uma comissão organizadora, tal como acontece até aos dias de hoje. Desde a primeira edição da Festa dos Fazendeiros, a 1 de abril de 1956, a organização do evento já passou pelas mãos de diferentes instituições, contando sempre com o apoio de outras instituições da terra e, claro está, da população. As três primeiras edições fizeram-se por iniciativa do Centro de Recreio Popular de Pontével (a génese da Casa do Povo de Pontével). Depois, de 1959 a 1963 (sem que se tenha realizado em 1962) foi realizada pelo jornal A Voz de Pontével; de 1964 a 1974 (sem realização de 65 a 67, assim como em 71) o jornal A Voz de Pontével organizou com a Casa do Povo de Pontével; de 1981 a 85 a organização coube à Casa do Povo à Junta de freguesia de Pontével; e a partir de 1986 passou a ser a Junta de Freguesia a organizar, até ficar a comissão organizadora responsável pelo evento, em 1996, na 30ª edição da festa dos fazendeiros. Vale a pena acrescentar que, citando um artigo de meados dos anos 90 de A Voz de Pontével, ao longo destes anos, houve sempre o apoio de uma comissão organizadora “da qual fizeram parte dedicados conterrâneos”.
Para mim é o evento mais significativo da nossa freguesia, porque consegue juntar muitas gerações e é em pequeno que se começa a ser pontevelense.
Paulo Calisto
Para além disso, outras coletividades da freguesia dão apoio à festa. Aqui vamos falar da Sociedade Filarmónica Incrível Pontevelense – é a banda que abre o desfile – e do Rancho Folclórico e Etnográfico da Casa do Povo de Pontével, que fecha o cortejo. Também à conversa com Mário Silva (53 anos) ficamos a saber que o Rancho de Pontével, para além de participar neste dia de festa, também chegou a organizar o evento, em 2005, até criaram um símbolo para a festa, que ainda hoje é usado. Mas o que Mário Silva gosta de lembrar, para além das suas participações em miúdo, é a sua estreia no rancho, precisamente na festa dos fazendeiros, uma tradição que vem de longa data: as estreias dos novatos no Rancho de Pontével aconteciam neste desfile. O mesmo aconteceu com Dina Amorim que aos 50 anos recorda esse dia de estreia, assim como as suas participações anteriores no cortejo com a mãe. A par disso, lembra, no rancho têm tido a preocupação de ir fazendo recolhas com os mais velhos para conseguir recriar aqueles tempos da forma mais fiel possível. Com menos cinco anos, Paulo Calisto, presidente da direção da Casa do Povo de Pontével também se lembra de participar em miúdo, com os pais, e depois com o rancho. “Para mim é o evento mais significativo da nossa freguesia, porque consegue juntar muitas gerações e é em pequeno que se começa a ser pontevelense”.
E a homenagem às gentes de Pontével, aos que já morreram e aos que ainda vivem e mantêm vivo este bairrismo, continua dias depois da festa com o almoço dos fazendeiros. Neste caso, a homenagem é feita pelos mais novos aos mais velhos, com 75 e mais anos, num convívio que junta dezenas de pessoas, mostrando que, como diz Jorge Pisca, “ser pontevelense é gostar da sua terra, uma terra amigável, com uma juventude e uns velhos que são maravilhosos e que têm um saber e uma cultura enormes, que sempre souberam conviver uns com os outros”.