Faz 20 anos que Rui Silva conseguiu o seu primeiro título de campeão do mundo, conquistado nos Mundiais de pista coberta, em 2001, que se realizaram em Lisboa, no Pavilhão Atlântico entre os dias 9 e 11 de março.
Com uma carreira cheia de conquistas, Rui Silva, é especialista em meio fundo, designadamente os 1500 e os 3000 metros e conquistou 10 medalhas em grandes competições internacionais, com as cores de Portugal, entre as quais um título de campeão mundial e três títulos de campeão europeu (em pista coberta), afirmando-se como um dos melhores atletas portugueses de sempre.
Rui Silva começou no futebol, nos iniciados do União de Santarém, antes de fazer a passagem para o atletismo, aos 15 anos, seduzido pelo treinador do Estrela Ouriquense, Pedro Barbosa.
Hoje recordamos a entrevista publicada na primeira edição da revista DADA, em abril de 2007. Foi no Estádio Municipal do Cartaxo que Rui Silva nos contou como se tornou no atleta português com mais medalhas em pista coberta e um dos melhores do mundo.
Quem é o Rui Silva? Como pessoa sou uma pessoa calma, sossegada, gosto de estar no meu cantinho, como atleta acho que toda a gente já me conhece.
Comecei aqui no Cartaxo, no Estrela Ouriquense, com treze anos mais ao menos e estive aqui até aos meus dezoito anos e no ano de 1996 fui para Lisboa para representar o Sporting Clube de Portugal.
Já nessa altura o seu sonho era ser atleta?
Era difícil, não pensava em conseguir resultados para garantir a minha independência
Mas já pensava em ser atleta como profissão?
Sim, normalmente quando os jovens pensam em ser futebolistas, eu não tinha muito jeito para o futebol, mas tinha jeito para correr. Quando estava aqui no Estrela não tinha muito bem a perceção das minhas qualidades, toda a gente dizia que eu tinha muito jeito, mas do dizer ao concretizar vai uma grande diferença, então quando fui convidado para representar o Sporting comecei a ter outro tipo de resultados e a acreditar que era possível concretizar os sonhos que tinha. Foi quando comecei a ir aos campeonatos da Europa e do mundo e comecei a chegar à final e a conquistar algumas medalhas.
Quando entrou no Estrela Ouriquense, o que o motivou, já era o sonho ou foi alguém que o motivou?
Foi por acaso, antes do Estrela estive num clube do Bairro ali em Vila Chã de Ourique ali junto ao Gil, e o Artur Guedes dava uns treinos e eu comecei a correr com uns amigos do bairro e treinava duas ou três vezes por semana, até que o Estrela resolveu fazer uma secção de atletismo e o meu treinador passou a ser o Pedro Barbosa até eu sair daqui.

Como foi a ida para o Sporting?
Como eu ia aos campeonatos nacionais e normalmente há sempre pessoas que estão lá com equipas de seniores e embora o convite já tenha sido feito quando ainda era júnior achou-se que seria melhor eu esperar e entrar pelos seniores e foi isso que acabou por acontecer. Comecei a treinar duas vezes por dia.
Teve mais convites?
Sim do Maratona Clube de Portugal e do Benfica, mas a proposta do Sporting foi a melhor.
Já nessa altura era Sportinguista?
O meu clube é o Sporting, não era nessa altura, mas aprendi a ser Sportinguista.
O clube deu-me todas as condições.
Como era a sua vida nessa época?
Tinha dezoito anos e tinha ido poucas vezes a Lisboa. Fui dividir um apartamento com dois colegas que representavam o Sporting e vivi com eles durante quatro anos, depois fui para casa própria.
Qual foi a sua primeira grande medalha?
Foi no europeu de 1998.
Qual foi a sensação?
É só aquele momento, vinte ou trinta segundos quando acabamos a prova, que se sente que o objetivo foi concretizado. Quando não se consegue é a frustração, às vezes não se consegue o primeiro, mas consegue-se o segundo ou o terceiro. Mas tudo depende dos atletas porque para alguns o objetivo é chegar à final e conseguir os mínimos para estarem presentes nesses campeonatos. Dependendo do campeonato, só podem ir dois ou três atletas por país. Há atletas que o objetivo deles é passo a passo.
E o seu é qual?
Estar sempre presente na final e depois é os lugares da frente.
Não é sempre o primeiro lugar?
O objetivo é sempre o primeiro lugar mas por exemplo nos jogos olímpicos o meu objetivo era conseguir uma medalha, tinha noventa por cento de probabilidades de conseguir o terceiro, o primeiro e o segundo lugares eram quase inatingíveis, o que não quer dizer que não conseguisse, um dos atletas que ficou à minha frente continua a ser o melhor do mundo. Há que ser realista é lógico que trabalho para ser primeiro e sei quais é que são as minhas qualidades e não posso querer mais do que aquilo que posso dar.
Quando vai para as competições sabe sempre com quem vai competir e quais as capacidades dessas pessoas?
Sim, mas os campeonatos são sempre diferentes do resto das competições, estamos sempre dependentes de nós próprios, não há jogos de equipas e no atletismo mesmo que estejam presentes atletas do mesmo país é sempre uma prova individual. E não ganha sempre o que está em melhor forma, normalmente ganha o que é mais inteligente a correr.
Quando ganha, sente que é só por si ou é também pelo país?
Quando ganho é pelo país, represento a seleção e claro represento-me como atleta e tento melhorar sempre o meu currículo, mas também represento o Sporting e é claro que o benefício que vem para mim também vem para a seleção, para o clube ou para a marca que me patrocina.
E cantar o hino como é?
É emocionante, sobretudo quando as provas são cá como aconteceu no pavilhão multiusos com toda a gente a cantar. Agora quando as provas são no estrangeiro mal se consegue ouvir o som. É diferente dos jogos de futebol onde há sempre uma massa humana muito maior. No atletismo são poucas as pessoas que se deslocam para ver as provas.
Nos últimos segundos antes de cortar a meta o que pensa? Vê os adversários?
Nos últimos metros já não se consegue, quanto muito tentar olhar pelo canto do olho, depende dos estádios, por vezes consegue-se ver pelos ecrãs quando estes estão posicionados para a reta da meta e se a distância do adversário for grande no ecrã ao vivo ainda é maior. Mas aqueles metros finais às vezes serve só para uma pessoa se conformar com aquele lugar ou então saber que vai ganhar, mas aquele relaxe dos últimos cinco metros é o suficiente para ser surpreendido se vier algum atleta em cima.
Essas provas são muitos desgastantes?
Para mim os campeonatos acabam por ser mais desgastantes psicologicamente do que fisicamente. Nos últimos quinze dias antes da prova abranda-se o treino e a forma vem ao de cima, mas depois é o stress competitivo do aproximar da competição, as eliminatórias, as meias finais e as finais são normalmente uns dias muito desgastantes.
E há muita pressão por parte do clube?
Não, mas da parte da comunicação social há a pressão para as medalhas, mas eu crio a minha própria expectativa para estar estimulado no dia da competição.
Já me aconteceu estar a participar nas eliminatórias e já me estarem a falar da final e muita coisa pode acontecer, já me aconteceu cair numa prova, ser eliminado ou os adversários serem melhores. Muita coisa pode acontecer até às finais. Eu considero mais difícil passar as duas primeiras fases do que estar presente na final. Na final já sessenta ou setenta por cento da pressão já foi. E dependendo dos atletas que estão presentes passa a haver um objetivo e sabemos logo mais ao menos onde podemos situar a nossa classificação apesar de se lutar sempre pelo lugar da frente.
É o atleta português mais medalhado em pista coberta. A sua especialidade é os 1500 metros?
Sei que no total tenho onze medalhas e mais de metade delas foi em pista coberta. Campeonatos normalmente tenho participado sempre nos 1500 metros mas em pista coberta participei também nos 3000 metros. A pista coberta surge para que os atletas não estejam parados no Inverno.
Em termos de estratégia qual é a diferença entre os 1500 e os 3000 metros?
Os 1500 metros é uma prova mais rápida e em termos de percentagem é uma prova que requer sessenta por cento de resistência e o resto é velocidade enquanto que a dos 3000 metros já envolve oitenta por cento de resistência.
Quem foram ou são as pessoas que contribuíram para os seus resultados?
Não se faz nada sozinho, uma prova é o resultado do trabalho de muita gente e eu estou encarregue de mostrar se esse trabalho foi bem feito ou não, e se o objetivo foi alcançado, eu sou a face visível do trabalho. Há o treinador, os massagistas, o médico da federação, a família, o clube, a federação que nos dá as verbas mas foram o Pedro Barbosa e o Artur Guedes que despoletaram todo este ciclo que foi até hoje a minha carreira. Sempre que eu vou a um campeonato e consigo um objetivo lembro-me deles pois se estou no atletismo foi graças a eles, principalmente o Pedro porque foi ele que me disse para começar a trabalhar as distancias mais curtas, a coordenação, a técnica, a velocidade para vir a ser um atleta de mais qualidade e hoje em dia prefiro fazer as distancias mais curtas. Eu sei que sou eu que tenho de treinar, mas quando chego à pista está ali o trabalho de muita gente, as coisas tem de ser planeadas, tem de haver objetivos. Em casa as coisas também tem de estar bem, e depois há também os colegas porque em determinados treinos mais específicos por vezes é necessário a ajuda dos colegas.

Quais são os seus ídolos?
Quando eu comecei os meus ídolos eram o Carlos Lopes o Fernando Mamede e a Rosa Mota. Quando mudei para o Sporting eram os irmãos Castro que depois acabei por ser colega deles.
E eles acompanham a sua carreira?
No atletismo acabamos por ser uma família, e depois dos resultados recebo sempre mensagens ou de felicitação quando ganho ou de apoio quando não ganho, o que é importante pois é sinal que somos reconhecidos.
Como é que a sua família vê o seu percurso no atletismo?
Eu venho de uma família bastante humilde, o meu pai morreu tinha eu doze anos e foi a razão da minha vinda para cá, na altura vivia na zona de Santarém, a minha mãe é surda muda e eu vim para casa dos meus avós e o meu avô nunca viu a minha profissão como uma coisa de futuro ou de sucesso, não conseguia compreender. Depois fui para o Sporting e criei a minha independência. Hoje sou casado tenho uma filha e um filho que acompanham a minha carreira e me apoiam e a minha mãe fica toda contente quando ganho, gosta de ver e coleciona os recortes dos jornais.
A carreira de atleta obriga a muitas privações?
Não podemos andar toda a noite em discotecas. Quando fui para Lisboa para o Sporting fui viver com colegas também atletas e não tínhamos vícios, tinha uma rotina de levantar de manhã, ir para o estádio e treinar das nove e meia até ao meio dia, almoçávamos e depois voltávamos a casa e às cinco novamente treino até às sete e casa. Hoje tenho também a minha rotina de treinos e quando volto para casa é para estar com a minha família. A minha filha gosta que faça os trabalhos da escola com ela e depois vou brincar com eles. Estou com eles durante a semana porque as competições normalmente são ao fim-de-semana.
O seu estatuto hoje permite-lhe ter uma vida estável. E quando começou na altura que foi para o Sporting?
Dava para viver, ganhava acima do ordenado mínimo nacional e a casa e a alimentação eram dados pelo clube, hoje em dia não me posso queixar, apesar de ter uma profissão de desgaste rápido e daqui a uns anos já não posso competir, mas não é como os futebolistas, as pessoas por vezes tem uma ideia errada.
Como lida com as derrotas?
Numa competição tento sempre obter o melhor resultado possível, quando não consigo aproveito isso para me dar força para competições futuras e me dar mais garra para cumprir os meus objetivos, mas não me vou abaixo apesar dos comentários da comunicação social que prefiro não saber o que dizem pois para eles só é notícia o melhor e o pior.
Quando pensa parar?
O mais tarde possível, estou com vinte e nove anos e normalmente o fim é depois dos trinta e cinco anos, até lá vou ter de subir de distancia ou seja competir pelas provas mais lentas, o corpo humano tem limites e perde-se velocidade, mas com a técnica as coisas acabam por sair bem.
Não tenho problemas e estou em boa condição física apesar de no ano passado ter estado lesionado, mas isso faz parte, agora é tentar evitar que isso me aconteça.
E depois gostava de treinar miúdos numa escola de atletismo?
Gostava, mas isso é lutar contra tudo e contra todos, é muito difícil pois não há patrocínios e é preciso equipamentos, alimentação, transporte para a deslocação para as competições, alimentação para os miúdos e remuneração para os treinadores (mesmo que não seja a cem por cento) e requer também deixar a família para levar os miúdos às competições e eu não querendo parecer egoísta mas não quero privar a minha família de estar comigo, apesar de ter nascido de uma situação destas e de dar muito valor às pessoas que fizeram todos esses sacrifícios por mim.
Tem de haver uma escola que possa receber os miúdos que querem correr, cá existe o Ateneu e o Pedro Barbosa que está à frente da secção de atletismo. E ao princípio é tudo muito bonito mas quando é preciso por a máquina a funcionar já é mais complicado é por isso que não me vejo a fazer isso.
Como se sente por haver uma prova de atletismo com o seu nome?
É claro que me sinto orgulhoso estou na terra que me viu nascer para o atletismo e ser reconhecido por isso é bastante gratificante.
Faz sempre questão de estar presente?
Sempre que posso sim, é a prova com o meu nome é a prova que é feita na minha terra.
Sinto-me acarinhado pelas pessoas.
Quais são as suas próximas metas?
Os Campeonatos e estar em condições para chegar aos lugares da frente. Agora vou ter o campeonato do mundo em Agosto e no próximo ano o campeonato europeu e se Deus quiser os Jogos olímpicos.
Qual a receita para vencer?
Qualidade e gosto por aquilo que se faz, mas acima de tudo tem de se ter vontade de trabalhar.