Junho é o mês de São João, e São João é o orago do Cartaxo. A tradição católica de atribuir a proteção de uma localidade, a um Santo patrono ou padroeiro surgiu na Idade Média. Nem sempre o padroeiro é o santo mais conhecido e popular do sítio: o padroeiro de Lisboa é São Vicente, mas é Santo António que se celebra. O mesmo acontece com o Porto, onde decorrem os maiores festejos de São João em Portugal, mas a padroeira é Nossa Senhora da Vandoma. No entanto, quase sempre o santo protector tem uma igreja ou capela importante. No Cartaxo, é a igreja paroquial, que pelo menos, há mais de cinco séculos é dedicada a São João Baptista.
João Baptista é um dos santos celebrados por todo o mundo cristão (e não só…) com maior diversidade de rituais. Portugal não constitui excepção, pese embora o facto de em sítios menos isolados, como o Cartaxo, cedo se perderam rituais e a memória destes, mantidos em muitos sítios, como é referido na obra Festividades Cíclicas de Portugal, pelo etnólogo Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990), obra de referência publicada pela primeira vez em 1984, e que se pode consultar aqui*
No Cartaxo, até ao final dos anos 1960, os festejos do São João resumiam-se a pequenas fogueiras comunitárias, da iniciativa espontânea dos vizinhos, que por vezes decoravam as ruas com flores de papel. As fogueiras faziam-se nas várias zonas da cidade (Arrabalde, Outeiro, Casalinho, Nogueiras, Valverde, Ribeira, etc.), com a excepção do centro e das ruas alcatroadas, nas quais a câmara municipal proibia essa prática. Como em todo o país, o uso da queima do rosmaninho, espalhava um aroma perfumado no ar que as crenças populares atribuíam poderes de purificação e esconjura. O rosmaninho era apanhado nos arredores do Cartaxo, havendo por exemplo, no Alto do Gaio, por detrás da antiga fábrica MOALI.
Quanto à origem de João Baptista enquanto pessoa, o conhecimento é baseado nos evangelhos, sendo considerado pelos evangelistas o último dos grandes profetas. João significa “Jave é misericordioso”, e o nome foi escolhido pelo pai, Zacarias, que escreveu numa tabuinha. Nasceu entre 2 e 6 a.C, e a celebração do seu nascimento já era referida no Concilio de Ágde (arredores de Narbona, França)em 506d.C.
O 24 de Junho celebra o nascimento de João Baptista, aspecto relevante, na medida em que, além de João Baptista, do conjunto dos santos, no calendário litúrgico católico, só o nascimento de Jesus e Maria são celebrados.
Este aspecto ganha ainda mais relevância se atendermos a que é a morte dos santos que se celebra, pois significa o nascimento para a vida eterna. A partir do século XIX, a mesma lógica foi adoptada na celebração de figuras da cultura laica, pois foi a morte que os consagrou definitivamente na memória colectiva da sociedade e dos seus pares futuros.
Por outro lado, a celebração do nascimento de João Baptista foi definida coincidindo com o solstício de Verão, a 24 de Junho, dia diametralmente oposto ao da celebração do nascimento de Jesus, a 25 de Dezembro, e que coincide aproximadamente ao solstício de Inverno.
Quanto às representações de João Baptista, a Paróquia do Cartaxo possui, pelo menos 9, havendo 8 na igreja e 1 na luneta da entrada da casa paroquial, onde João é representado no seu isolamento como eremita (Fig.1). Estas representações estão directamente ligadas ao texto bíblico e em nada se relacionam com as tradições pagãs que envolvem a festa do santo.
A imagem/escultura processional, que é exposta todo o ano no retábulo-mor da Igreja (Fig.2), apresenta João com determinados atributos, que servem para o identificar em qualquer parte do mundo onde for representado. Só muito recentemente passaram a ser identificados/reconhecidos pelo seu próprio retrato, como Madre teresa de Calcutá ou o Papa João Paulo II, resultado das circunstâncias dos tempos e da proliferação das imagens pela comunicação social
A imagem que se consagrou como João Baptista, apresenta o dedo indicador em riste, indicando aquele que há-de vir (Jesus), atendendo a que viveu numa época em que os judeus há muito aguardavam a vinda do messias, anunciada por vários profetas do Antigo Testamento. Na tradição profética de Isaías e Jeremias, os judeus perguntavam a figuras com certa aura de santidade, se eram o messias, mas quando perguntaram a João, este respondeu que Ele estaria para vir e se iria revelar. No já referido Concílio de Agde (506 d.C.), a representação de João ganha um cajado e um cordeiro, representando a ideia de que ele próprio foi como um cordeiro imolado em sacrifício, e por outro lado, anunciou Jesus: “eis o cordeiro de Deus”.
Posteriormente, na Idade Média, surge o lábaro (bandeirola), a cruz, o cabelo desgrenhado, pele tisnada pelo sol do deserto, e por vezes, a concha/vieira aparece como o símbolo do baptismo. Não confundir as vieiras que aparecem na porta da Igreja (Fig.3) com a vieira de João Baptista. As vieiras da porta referem-se às Comendadeiras de Santos o Novo (Lisboa), uma instituição caritativa para mulheres familiares de cavaleiros da Ordem de Santiago, que durante muito tempo tutelou a apresentação do pároco desta igreja, tal como prova a cruz de Santiago que está entre as referidas vieiras.
Vale a pena referir que os atributos dos santos padroeiros das freguesias aparecem frequentemente na heráldica. Nas armas da freguesia do Cartaxo (Fig. 4) aparece a cruz e o lábaro, mas noutras armas locais podem aparecer também outros elementos como o cordeiro, conjugados nas regras da heráldica, com outros símbolos identitários locais: (Alcaria (Fundão), Beja, Campo Maior, Castelo de Vide, Entroncamento, Fernão Joanes (Guarda), Longos Vales (Monção), Moura, Porto de Mós, São João da Fresta (Mangualde), São João da Talha (Loures), São João do Campo (Coimbra), São João das Lampas (Sintra), São João dos Montes (V. F. Xira), Tomar, Vila Chã (Viana do Castelo,), etc. etc. Uma excepção consiste em antigas paróquias/freguesias que nunca se tornaram freguesias “laicas” em 1911, como São João da Praça, em Lisboa, e por isso nunca tiveram as suas armas, cuja existência só foi obrigatória por lei a partir da década de 1990.
Nas paredes laterais da capela-mor da igreja, podemos observar o ciclo da vida de João Baptista, nas telas: a Visitação de Maria à prima Isabel, mãe de João Baptista (Fig.5), o Nascimento de João Baptista (Fig.6), a Anunciação do Arcanjo Gabriel a Maria (Fig.7), o Baptismo de Jesus por João Baptista no Rio Jordão (Fig.8), também representado no vitral de Ricardo Leone (Fig.9) existente no baptistério. As pinturas podem ser do pintorr scalabitano Luís Gonçalves de Sena e executadas na primeira metade do século XVIII. Abaixo, os grandes painéis de azulejos, também do século XVIII, representam uma Pregação de João Baptista (Fig.10) e a Decapitação ou Martírio de João Baptista (Fig.11). As representações de João Baptista já foram objecto de estudo em obras fundamentais, como a do jesuíta Raoul Plus (1882-1958), publicada em Paris em 1937 ou do franciscano Alexandre Masseron (1880-1959), (Fig. 12), publicada em Paris em 1957, entre outras. João Baptista é também o padroeiro de Macau foi a 24 de Junho a cidade venceu 850 soldados das índias Orientais Holandesas, embora nenhum atributo joanino apareça nas suas armas.
Desconhecemos a razão da paróquia do Cartaxo ser dedicada a São João Baptista, mas o facto de ter sido sagrada a 31 de Agosto de 1529 pelo Bispo D. Ambrósio de Rossiona pode não ser alheia ao facto da morte de São João Baptista se celebrar a 29 de Agosto. Esta celebração, a Decapitação de João Baptista, que tem entre nós, hoje, uma expressão discreta e quase inexistente, embora noutros locais, a cabeça de João Baptista seja objecto de devoção, seja um dos os 4 crânios relíquia que se acredita, poder ter-lhe pertencido, seja por forma de representação artística.
Herodes mandou prender João, pela repreensão que este lhe fez por, em vez de se corrigir, se divorciar de sua esposa Fasélia e tomar como amante a sua cunhada Herodias, mulher de Herodes Filipe I. No aniversário de Herodes, a filha de Herodias, Salomé, dançou perante o rei e seus convidados, o que agradou tanto a Herodes lhe prometeu qualquer coisa que desejasse. Quando a filha perguntou à mãe o que deveria pedir, Herodias sugeriu que ela pedisse a cabeça de João Batista numa bandeja, e Herodes mandou executar João na prisão.
Não foi caso único, pois durante a vida, João Baptista denunciou os atropelos morais da sociedade e tinha grande influência sobre o povo, aspecto que causava algum pavor nos governantes.
Independentemente da Fé ou da Religião, o leitor pode encarar João Baptista como uma figura histórica e literária. João representa todos aqueles que vivendo de forma simples e austera, procuram instruir-se e formar-se e não temem as consequências de denunciar episódios de perversão humana, mesmo contra poderosos. Foi vitima da sua denúncia e do receio de agitar as hostes populares, numa época em que o povo interferia na vida privada dos seus governantes, por vezes, por meio de revoltas directas, violentas e imprevisíveis. Com a devida distância, recordamos a peça Leonor Telles, de Marcelino Mesquita, história baseada em relatos históricos, cuja protagonista era vista como adúltera provocando a indignação e revolta popular.
A importância de João Baptista na cultura portuguesa traduz-se, também, no facto de ser um dos nomes mais populares em todas as épocas (Portugal teve 6 reis de nome João!). Quando hoje na comunicação social, pessoas esclarecidas (João Baptista tinha elevada formação intelectual, por ter frequentado a comunidade de Qumram), têm a coragem e a de denunciar actos de corrupção e perversão, causando-nos admiração a sua ousadia, colocando-se como alvo de vingança e renunciado assim a uma situação de segurança, lembremo-nos do espírito e da personalidade de João Baptista.
O autor escreve segundo a antiga grafia.
Texto publicado na edição digital de junho, onde pode ver as imagens referenciadas aqui