Se lá é mirandês, cá seria cartaxês (III)

Crónica de José Caria Luís

Vá lá que, ao contrário do que se poderia supor – sabe-se lá porquê –, após os dois primeiros capítulos, o presente tema não suscitou polémica. Ainda bem, porque os textos relatam com toda a fidelidade as vivências e linguagem de antanho e não só.

Mas, prosseguindo na teia do palavreado bastante utilizado no concelho, que tento trazer à memória dos mais novos, fazendo estorial do mesmo, prossigo com este lote de contos a que chamo saga. Nada de rivalidades com os mirandeses, porque se eles são genuínos, afirmando-se em três dialetos, nós por cá também o somos, pese embora nos contentemos com apenas um.

Então, no caso daquele rapazola lambão, “lavajão” que, ao comer, com sofreguidão, um naco de melancia, como se o Mundo se estivesse a acabar, acabou por se engasgar. A mãe, aflita, pedia ajuda às vizinhas, gritando que o filho estava “insubocado”. Uma batia-lhe nas costas, outra tentava enfiar-lhe um jarro de água pelas goelas abaixo, outras duas rezavam à Santa, mas debalde, tudo aquilo sem resultado. Foi quando chegou a Maria da Marta, pessoa mais expedita, já muito habituada a lidar com melancias e melões, que deitou as unhas ao puto e lhe “amargunçou” a cabeça até aos joelhos. Assim, lá conseguiu sacar o pedaço de melancia que o sufocava. Foi um milagre ter aparecido esta vizinha. A Marta, ainda a “afegar”, tinha chegado na carreira das 12h, depois de ter ido ao Cartaxo aviar-se no “Zé da Comprativa”. Porém, no rescaldo, e à boa maneira da terra, a mãe não se conteve sem ter que molhar a sopa no lambareiro.

Para as mulheres, a vida no campo também era dura. Tantas vezes, no inverno, elas se queixavam de não terem “taramanhos” nos dedos devido ao frio. Isto, somado às molhas nas costas, quando apanhavam “granizo”, não era fácil. Granizo, mas sem pedras, sem saraiva. Mais bem-dito, seria uma chuvada…

O marido da Maria Júlia já vinha um bocadito pingado. Ela, aproveitando-se do facto, repreendeu-o pela despesa de vinho semanal, que já ia em 20$00. Ele não gostou, mas ela também não. Daí, sem demoras, “gançaram-se ambos dois” numa briga sem nexo, tendo o marido ficado por baixo após ter “intropeçado” numa escada. Ela, “reçaivada”, depois de lhe ter aplicado duas “vardascadas” nas costas, desandou dali, não fosse o diabo (do marido) tecê-las.

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Um rapaz da vila, apesar de exibir um cordão com um “cinque-saimão” dourado ao dependuro, para impressionar, não era lá muito bem-visto pela mãe da moça. A senhora já havia manifestado à vizinhança a sua aversão ao “toleirão” que, segundo ela, sem ofício nem benefício, só queria casar por interesse. Ela que, com o marido, tinha poupado afincadamente para comprar à filha uma mobília de estilo “Quinano”, não ia permitir que tal matarruano usufruísse desse bem. Ela vangloriava-se de que, lá por casa, há muito que havia luz elétrica, ao passo que na dele ainda se alumiavam à luz da candeia. Para ela, que se sentia uns degraus acima da família do pretendente, o único utensílio a azeite que se usava em sua casa era a “amentelia” para temperar as batatas.

O cartaxês ainda tem algo mais para dar, ao passo que o mirandês se “paulitou” de vez.

*Artigo publicado na edição de novembro do Jornal de Cá.

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