O Sotaque e as Cunhas

 

E foi aí, depois destes primeiros contactos de proximidade, que começámos a perceber que, afinal, o falar à moda de Vale da Pinta não era padrão nem modelo para ninguém que não fosse genuinamente valedapintense. É verdade… Opinião de José Caria Luís

 


E foi aí, depois destes primeiros contactos de proximidade, que começámos a perceber que, afinal, o falar à moda de Vale da Pinta não era padrão nem modelo para ninguém que não fosse genuinamente valedapintense. É verdade que, até então, e além da nossa própria matriz linguística, apenas conhecíamos as sonoridades do Cartaxo e de Pontével. Mas, caramba! Para tão curta distância geográfica entre estas três localidades, porquê tantas diferenças nas pronúncias das suas populações? Eu nem me atrevia a imaginar qual o tipo de fonética reinante nas aldeias que pertenciam a Pontével, como os Casais Lagartos, Casais da Amendoeira, Casais dos Penedos, Cruz do Campo, Casais de Vale da Pedra e Reguengo de Pontével. E na Ereira e sua vizinha Lapa? Os seus naturais também teriam sotaque? Também os falares das ribeirinhas Valada, Porto de Muge e Reguengo de Valada, eram por nós desconhecidos. E em Vila Chã de Ourique (na altura diziam-nos que era o Casal d’Oiro), ali a dois passos do Cartaxo, como seria afinal? Seria que, a nível concelhio, nos entenderíamos uns aos outros sem precisar de intérprete?

A verdade é que a ordem natural das coisas não se compadecia de tais limites linguísticos e, muito menos, geográficos. Chegava o momento de soltar amarras e de nos tornarmos livres. Porém, nada de ilusões, porque, logo à partida, ficámos com a noção de que o conceito de liberdade tinha muita subjetividade. Em princípio, seria como uma ramificação, cujas linhas divergentes não tinham origem na geração de que falo. A estratificação da sociedade civil em camadas estudantis e o vasto leque das laborais, já vinha de longe. Pelo que se sabia, a cor da massa encefálica pouco ou nada tinha que ver com as saídas (nestes casos, entradas) nos mercados. Tal como a cinzenta nem sempre acompanhou o estudante, também a amarelada não era exclusiva dos excluídos. E o mais curioso é que nem sempre era cada qual a escolher o seu destino: ele tinha que se sujeitar às regras que lhe iriam ser impostas, sem direito a quaisquer veleidades. Que interessava que eu quisesse vir a ser estudante a tempo inteiro, ou um mecânico enfiado num garboso de fato-macaco, se a sociedade me restringia esse meu desiderato? Não bastava querer: era preciso ter outros atributos, a começar pelas posses materiais, passando pelo rol de padrinhos, cujo empenho redundava nas respetivas cunhas. E demos connosco a observar o cotejo de hipóteses que se nos afiguravam, mas que, no fundo, muitas delas nos seriam vedadas logo à partida.

Também aqueles que eram relegados para fora da esfera académica ou mecânica tinham que fazer pela vida. Não adiantava carpir. Por tal motivo, mais lhes valia agarrarem-se a um leque de cunhas mais fracotas e entrarem nas áreas da serralharia civil, canalizador, eletricista e balconista. Contudo, mesmo sentindo algum desconforto por não fazerem parte das elites, bem podiam sentir-se moderadamente satisfeitos e levantar as mãos a Deus, porque bem pior que isso ainda estaria para vir.

Foi por isso que apareceu o pessoal sem cunhas nem dotes, que se viu relegado para patamares inferiores.

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* Crónica publicada na edição de outubro do Jornal de Cá.

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