Um cancro chamado egoísmo

Por Pedro Camacho

Quando um astronauta contempla o nosso mundo da perspetiva do espaço, toma consciência do quão maravilhoso é vislumbrá-lo sem qualquer defeito. A sua visão alcança um mundo uno, onde as únicas fronteiras são os recortes com que a Natureza desenhou o nosso planeta. É uma perspetiva singular que não permite ver as desgraças que o assolam, desde os conflitos armados até à fome e às doenças que afetam milhões de pessoas. Dessa distância confortável, os astronautas criam a ilusão de um mundo em paz, girando na quietude da sua órbita celeste.

Mas raros são os que têm o privilégio de subir além da exosfera. Como não somos astronautas, temos de lidar com os defeitos do nosso mundo com os pés bem assentes na terra. Longe de se circunscreverem aos grandes problemas que massacram a existência humana, outros são os defeitos que proliferam na sociedade em que vivemos e com os quais nos deparamos no quotidiano. E poucos são os dias em que não sejamos confrontados com o egoísmo.

O egoísmo é um amor-próprio excessivo, caraterístico de quem coloca os seus interesses, opiniões e necessidades acima de qualquer outra pessoa. O egoísta não despreza, necessariamente, aqueles que o rodeiam, mas pensa em si em primeiro lugar. Aliás, o egoísta necessita de pessoas altruístas ao seu redor para tirar partido da sua generosidade – só assim consegue subsistir. Até porque, por mais que o egoísta teime em viver numa redoma de vidro, ele depende dos outros para prosseguir com os seus hábitos e atitudes egoístas.

Ser-se egoísta é praticar a insensatez nos comportamentos, anular a consciência sobre os efeitos dos atos praticados no outro e repudiar o compromisso com o mundo em que se vive. Exemplos de puro egoísmo estão patentes no nosso dia-a-dia. Quando vemos alguém que não consegue partilhar o que tem com o próximo. Quando vamos à zona de restauração de um centro comercial e nos deparamos com pessoas que deixam boa parte da comida intacta nos tabuleiros, acabando por ser deitada ao lixo. Quando vemos aquelas pessoas que compram roupa e calçado desalmadamente, num consumismo desenfreado, e depois nem sequer usam o que compraram. Quando alguém decide impor a sua vontade e controlar tudo à sua volta, não ouvindo a opinião dos outros. Quando alguém manipula e distorce a verdade dos factos para o seu próprio benefício ou prejuízo de outrem. Todas estas pessoas são egoístas para com o outro, para com a sociedade onde se inserem e para com a sustentabilidade de um mundo com recursos limitados.

O egoísmo não está presente apenas nestes comportamentos. No trabalho, o egoísmo habita naquele colega que extrai benefícios do outro, não lhe reconhecendo o mérito devido. Ou do colega que tira partido da imaturidade ou do estado emocional fragilizado do outro para pedir favores. Mais preocupante que isto é o caso de empresas onde as chefias assumem uma postura censurável em relação aos trabalhadores, mesmo quando estes apenas desejam exercer os seus direitos. Apesar de esses direitos estarem consignados na lei, são recorrentes os casos em que o trabalhador está sujeito a um regime laboral que não dignifica a sua formação profissional e académica, que deteriora a sua saúde física e mental e que não lhe garante as necessárias condições de trabalho. Tais como são recorrentes as empresas que procuram trabalhadores altamente qualificados em troca do salário mínimo nacional. Ou as “caras feias” quando um trabalhador precisa de sair mais cedo da sua jornada de trabalho para ir a uma reunião na escola do filho. Ou os artifícios que algumas empresas criam para despedirem uma mulher pelo simples facto de ter engravidado, à revelia da lei.

Este egoísmo infiltra-se nas famílias. As famílias, tenham elas a composição que tiverem, são os pilares da nossa sociedade. Hoje em dia, constituir uma família é uma tarefa cada vez mais hercúlea. Mas há ainda quem tenha a audácia de o fazer, não obstante as dificuldades que muitos enfrentam para terem tempo de qualidade para educarem, falarem e brincarem com os seus filhos. Desde os pais que trabalham por turnos aos que têm mais que um trabalho para fazer face às despesas da casa. Esta situação deriva da inação do Estado, ao longo de décadas, em criar uma verdadeira política de natalidade e de apoio às famílias. Não basta apenas aumentar o abono de família ou conceder licenças de maternidade e paternidade, é necessária uma política estruturante e abrangente que devolva a dignidade às famílias e garanta a renovação das gerações. Não é saudável que uma criança não passe tempo de qualidade com os seus pais – não há canal de desenhos animados, telemóveis ou tablets que os substituam. Os valores e princípios da vida humana não se transmitem pelo materialismo.

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Não admira que as pessoas que vivem assoberbadas pelo seu trabalho e pela sua família consigam despender tempo para a vida em comunidade. Estas pessoas não são egoístas per se, mas são condicionadas pela sociedade que não lhes permite dedicar-se ao outro ou ter uma verdadeira perceção sobre o que as rodeia. Mas ainda continuam a existir bons exemplos de pessoas que, não obstante a dificuldade em gerir o seu parco tempo livre, procuram intervir na comunidade com a sua participação numa associação, ao abraçar uma causa social ou em exercer os seus direitos cívicos. São pessoas altruístas que contrariam uma sociedade que os molda e os formata para serem meras peças da engrenagem do processo económico.

Como disse Voltaire: “Não prestamos para nada se só formos bons para nós próprios.” Temos em nosso poder as faculdades imprescindíveis para travar o egoísmo, esse cancro que se alastra pela nossa sociedade. Conhecemos bem os seus sintomas, só temos de agir para evitarmos ser contaminados: ao participarmos na vida coletiva, na medida em que nos for possível; não enveredarmos por padrões de consumo abusivo, que coloquem em causa a sustentabilidade do nosso planeta; doarmos aquilo que já não pretendemos usar para alguma instituição ou causa solidária; não sermos generosos para quem, deliberadamente, apenas necessita de nós para favores ou beneficiar com algo; e atentarmos aos problemas e necessidades daqueles que nos são próximos – às vezes, basta uma palavra, mesmo à distância, para aliviar o sofrimento de alguém. São apenas alguns exemplos em como podemos fazer a diferença com hábitos tão simples e que promovem uma sociedade mais humana, onde todos tomam consciência de si mesmos, do outro e do meio à sua volta.

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