“Pringles e felicidade”, por Ana Benavente
Ser cidadão é um trabalho a tempo inteiro. Custa muito. Se levarmos a sério os nossos direitos e deveres e as nossas responsabilidades, não fazemos mais nada.
Logo de manhã, oiço, na televisão do café, uma publicidade que diz algo assim, numa voz de criança “mãe, podemos fazer um bolo?” e “pai, posso andar na bicicleta sem rodinhas?”.
Apeteceu-me contactar a Comissão para a Igualdade e perguntar porque é que os bolos são com as mães e as bicicletas com os pais. Não contactei.
Na noite em que se esperava, ao segundo, que chegassem as 20h para sabermos quem seria presidente da república, fiquei sem tv, nem net, nem telefone. Pelo transistor (querida rádio) lá fui ouvindo. Uma gravação avisava que havia uma avaria na zona e que esperavam a resolução até à meia-noite. No dia seguinte liguei para a empresa e perguntei se não ficaria bem pedir desculpa aos clientes. “Que só indo a uma loja apresentar a reclamação, pelo telefone não podia ser”. Não fui.
Encomendei areia para os gatos num maravilhoso site que entrega ao domicílio (coisas da vida urbana). Depois de tudo pago, só depois, aparecem as condições de entrega: não fixam dia nem hora e pode chegar por várias vezes. Não há, sequer, um número de telefone para contacto. Lá comuniquei, pela net, que nunca mais seria cliente, mas a verdade é que ficaram com todos os meus dados. Apeteceu-me ir à DECO apresentar uma reclamação. Desisti, há desgraças mais graves.
Deste trabalho a tempo inteiro faz parte uma nova “moda”. Antes, ouvíamos falar de IRS duas vezes por ano: na data de declarar e na de pagar. Pois agora não há um mês nem uma só semana sem IRS. São as e-faturas, os portais, etc., etc. Que inferno, deixem-nos viver!
Percorro a TV e, quase invariavelmente – já nem falo do futebol – há painéis de comentadores, todos homens (com raríssimas exceções), qualquer que seja o tema. Ontem, sobre a violência doméstica, falavam eles e só eles. Insuportável.
É que isto anda tudo ligado. Andámos muito para aqui chegar e não quero voltar a ouvir, como na minha infância: “olha, hoje perdeu o Benfica, a …… vai apanhar do marido”.
Quando as desigualdades, os abusos, o medo e a indiferença se tornam “naturais”, acabou-se a cidadania. É uma luta de todos os dias. Mas seria um trabalho a tempo inteiro e temos que ganhar a vida – e vivê-la, já agora.
Ah, e não se esqueçam de ver o canal CMTV que acompanha ao minuto as desgraças, ao vivo e a cores e existe em sinal aberto, sem boxes nem nada. E vejam “A Quinta”. Grande qualidade cívica! É isto que queremos? Eu não. Que fazer?