Crónica de Vânia Calado
Deixavam os mais velhos entregues aos cuidados dos avós e eles seguiam caminho com o mais novo.
– Escarrancha – dizia ela enquanto encaixava as pernas do miúdo nos ossos das ancas. O cheiro a leite já bebido e a suor acompanhava-os.
Caminhavam em silêncio que um casal nunca tem muito a dizer ao outro. Ela de cesta à cabeça. Ele de saco ao ombro. Só quando se faziam acompanhar por outros como eles é que se ouviam as vozes. Iam como sempre, homens a abrir caminho e as mulheres no seu encalço.
Todos em direção ao trabalho que os esperava longe da casa que era sua. O patrão pagava os tostões da jorna, teto e lenha, mas eles trabalhavam como se fosse a única coisa que tinham na vida. Não havia domingo nem dia santo que lhes pedisse descanso e nem sabiam de hora para se fazerem ao campo. Era quando o capataz assim o dizia, mesmo que ainda não tivessem mais do que a lua para lhes alumiar os passos.
Elas faziam-se ao campo descalças. Trabalhavam com água pelo meio da perna e saia enrolada à cintura. As pernas a engelhar, o frio a colar-se ao ossos. Guardadas por eles que passavam o dia com o cu a descansar no cabo da enxada e levavam o dobro em moedas.
Os mais novos ficavam a atiçar o fogo que o almoço não tardava. Tinham idade para os bancos da escola, mas cumpriam o trabalho. Quando o sol determinava que era hora de descanso e o capataz aceitava tal determinação, lá esperavam os que voltavam. Todos à volta da panela, tão habituados à falta de conduto que nem sabiam que estavam com fome. Grão com couve num dia e couve com grão no outro. O cheiro do almoço a misturar-se com o pó da terra e o sal do suor. Colher mergulhada na panela que fazia as vezes de prato, pão partido à mão. Todos do mesmo.
Nada mais que a vida que levavam, pele calejada a troco dos tostões que guardavam. Apareciam quando vinha o trabalho, levantavam-se quando os de lá se faziam ao descanso que quem não tem a casa sua a que voltar ao fim do dia prefere trabalhar para esquecer.
Trabalho de gaibéu.