De etimologia ligada ao pau brasil, o país que Pedro Álvares Cabral achou, na perspetiva local, e que descobriu na nossa visão europeísta, foi a votos para eleger o novo presidente da república federal. O quinto maior país do mundo em área, sexto em população, com mais de 200 milhões de habitantes e habitualmente entre as dez maiores economias planetárias, com uma crise social e económica em mãos, foi chamado, por voto obrigatório, a escolher entre Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente entre 2003 e 2011, e Jair Messias Bolsonaro, presidente em exercício.
Este país singular, famoso pela floresta amazónica e que tem vivido polémicas consecutivas pelos incêndios devastadores e atentados ambientais no chamado pulmão do planeta, pelo samba e carnaval, pelas praias paradisíacas e o incontornável futebol, tem problemas à dimensão gigante do seu território e que se refletem na polarização política dos candidatos e na divisão acentuada entre as fações, a exemplo do que sucedeu nos EUA com Donald Trump e Joe Biden.
O Brasil chega a estas eleições após uma pandemia mal gerida pelo poder e que causou mais de 600 mil mortos, com um PIB oscilante e em queda recente, desemprego a aumentar para 14,4% e uma inflação que disparou para 10%, após anos nos 4%. A fome voltou a entrar na agenda política tais os problemas de acesso aos bens primários por parte de uma população muito heterogénea e estratificada e com recorrentes tensões sociais e de segurança. O clima político vive sob as asas negras da corrupção a que ninguém parece escapar. Lula da Silva foi ele próprio condenado em 2017 no polémico processo Lava-Jato, de lavagem de dinheiro e subornos, vindo a ser preso em 2018 e libertado em 2019, recuperando os seus direitos políticos já em 2021, permitindo-lhe assim recandidatar-se à presidência. Mas também Jair Bolsonaro tem tido várias acusações de corrupção e favorecimento, com nepotismo e tráfico de influência.
Foi assim, neste clima tenso e profundamente dividido, que o Brasil foi a eleições e vai voltar a 30 de outubro no chamado 2º turno, uma vez que a diferença de votos entre os dois principais candidatos não permitiu que um deles ganhasse desde já. Os 48,4% de Lula da Silva contra os 43,2% de Jair Bolsonaro mostram a referida divisão e o esvaziamento da votação em Ciro Gomes, com apenas 3% dos votos, tendo sido inclusive superado por Simone Tebet com 4,2%. Estes eleitores serão agora um dos alvos preferenciais da campanha forte que se prevê nas próximas semanas e que tentará convencer os chamados eleitores envergonhados, os tais que temem represálias por afirmarem as suas convicções políticas. Entretanto quer Ciro quer Tebet já afirmaram a sua preferência por Lula da Silva, numa escolha pela defesa da liberdade e dos direitos constitucionais e contra o autoritarismo demonstrado sucessivamente por Bolsonaro.
Mas olhemos com mais atenção para quem são Lula da Silva e Jair Bolsonaro, tão diferentes, mas igualmente representativos de um país multicultural, multiétnico e com profundas divisões económicas, sociais e raciais.
Lula da Silva nasceu em Pernambuco, nordeste do país, em 1945, vindo a rumar a sul para a grande São Paulo ainda criança. Após muitas privações e dificuldades conseguiu fazer um curso de metalurgia e em poucos anos liderou greves no chamado ABC Paulista, anel periférico da indústria metalúrgica pesada da grande urbe, contra a ditadura militar e veio a contribuir para a fundação do PT, partido dos trabalhadores, em 1980. Foi eleito deputado federal seis anos mais tarde e teve uma sucessão de perdas em eleições, para Collor de Mello em 1989, para Fernando Henrique Cardoso (que agora o apoia) em 1994 e 1998 e finalmente ganha em 2002 contra José Serra, no 2º turno, vindo a ser reeleito em 2006. Na sua ação política vingaram os programas sociais como o Bolsa Família, com transferências do governo federal para apoio às famílias carenciadas, e o Fome Zero, no combate ao flagelo da sub-nutrição, sendo reconhecidos pela ONU. Nos seus mandatos o Brasil logrou triplicar o PIB e obteve grau de investimento para emissão de dívida pública, algo negado antes.
Jair Bolsonaro, nasceu nos arredores de São Paulo em 1955, formou-se na academia militar em 1977 e serviu na artilharia e paraquedistas. Foi deputado federal entre 1991 e 2018, vindo a ser eleito em janeiro de 2019 pelo PSL, partido social liberal e é atualmente filiado no PL, partido liberal. Nos seus 27 anos de congressista, alinhou pelos conservadores e defendeu as práticas da ditadura militar que incluiu tortura e assassinatos. O seu governo pauta-se por um forte contingente de militares, com apoio ao uso e porte de arma generalizado e por uma política interna anti-indígena e negacionista face às alterações climáticas. Internacionalmente alinhou com partidos de extrema-direita e teve presença regular junto de Donald Trump, Viktor Órban e Recep Erdogan.
Se Lula da Silva tem a sua mancha política no Lava Jato e acusações de corrupção, Jair desceu ao inferno com a sua desastrosa condução da pandemia de Covid 19, com o seu negacionismo militante e a defesa de tratamentos sem suporte e evidência científica, vindo por último a atrasar, com enormes custos em vidas humanas, a chegada das vacinas ao país.
Como dizia um analista político brasileiro, “não há folhas limpas” e é com essa realidade que o povo brasileiro se confronta, tendo de escolher entre duas personalidades bem distintas mas ambas com telhados de vidro e muitas polémicas no percurso. No limite, e como defendia Sigmund Freud, a sociedade vive numa permanente dicotomia, entre a liberdade e a segurança. Se escolhe mais liberdade terá menos segurança e na outra face o seu contrário. Com Lula conhecerá maior liberdade e defesa dos direitos constitucionais e com Bolsonaro terá maior segurança, algo de peso num país com índices de violência muito altos.
Mas nesta eleição será a economia a ter a última palavra. O Brasil vive uma crise acentuada e agravada pela pandemia, com uma inflação crescente e maiores dificuldades dos mais pobres e mesmo da classe média, em pagar as contas e garantir o pão na mesa. Recuperar a dinâmica económica que ajudou a tirar milhões de brasileiros da quase indigência terá um peso relevante, mas o fator evangélico poderá inverter a balança no final. Afinal as igrejas evangélicas, tendencialmente apoiantes de Bolsonaro, representam cerca de 70 milhões de brasileiros e estes votantes normalmente seguem os ditames das suas congregações.
Neste caldo cultural, num país onde existem três grandes grupos étnicos, os de origem ameríndia, os denominados mestiços, com 33%, os de origem africana com 28% e os de origem europeia com 39% do total, sendo nestes os maiores contingentes além dos portugueses, os italianos e os alemães, as questões particulares de cada estado federal podem desequilibrar igualmente a balança a favor de um ou de outro candidato. Se o nordeste mais pobre se revê nas políticas sociais de Lula, já o centro sul paulista e de Minas Gerais vê em Bolsonaro o garante de segurança e nacionalismo que promove um Brasil menos dependente das ingerências externas e com mais foco na poderosa indústria brasileira.
No dia 30 de outubro esperemos que Bolsonaro, em caso de derrota não tenha o mau perder que deixa transparecer, a exemplo do seu amigo Trump e que no caso de ser Lula a perder, que promova o que o seu opositor não parece querer, a paz entre candidaturas e fações. Que no fim ganhe apenas e só o Brasil. Bem precisa e merece. O mundo agradece.