É insondável o encadeamento de eventos, ao longo de milhões de anos, que me permitiram chegar ao dia de hoje e estar a escrever estas linhas, no Jornal de Cá. A existência de vida constituiria, ela mesma, uma bizarria, uma excentricidade, se não estivéssemos tão habituados a ela tal qual se nos apresenta. É daí que surgem estas crónicas, para nos lembrarmos que o Mundo… é um lugar estranho.
Tom Clancy (1947 – 2013) afirmou que a única diferença entre a realidade e a ficção é que apenas a ficção tinha de fazer sentido. Terá escrito isto num momento de desespero ao tentar explicar uma absurda sucessão de acontecimentos. Se a expressão não tivesse sido inventada na altura teria de ser inventada actualmente para explicar a queda do liberalismo e a sua substituição por regimes populistas que coartam a liberdade e a democraticidade das sociedades, em prol de uma promessa qualquer. Uns prometem mais segurança, outros menos corrupção e outros mais prosperidade, mas o que os distingue de outros regimes são os métodos que se propõem para atingir esses fins. Propõem, invariavelmente, métodos raramente tentados, porque são ilegais ou atentatórios do Estado de Direito, mas altamente acolhidos pela população circunstancialmente extremada na sua visão dos acontecimentos.
Como bem lembrou o Prof. Pacheco Pereira, “o que funda a possibilidade de democracia são os seus elementos não democráticos”. Ou seja, existem aspetos da nossa organização em comunidade que não podem ser alterados mesmo com grande adesão da sociedade. Por exemplo, se tudo estivesse ao alcance da vontade popular, ninguém pagava impostos e os políticos recebiam o salário mínimo. Esta “possibilidade de democracia” só se materializa com modelos de democracia representativa que encarregam os representantes do povo de intermediar a vontade popular.
Por outro lado, o sucesso dos movimentos populistas reside, essencialmente, em tornar possíveis determinadas soluções que, em princípio, num Estado de Direito não são aceitáveis. A discriminação de outros seres humanos em razão de etnia, sexo, religião ou até da condição socio-económica é o elemento comum a todos os movimentos populistas. A culpa é dos ricos, a culpa é dos estrangeiros, a culpa é dos Judeus, a culpa é dos políticos… Circunstancialmente, a culpa vai ser sempre de alguém, e o que o populista faz é aproveitar esse descontentamento.
A tarefa árdua da democracia representativa reside em saber quando é que a vontade popular deve ser atendida e quando é que não deve ser atendida (e ela deve ser atendida muitas vezes). A credibilidade democracia depende muito desta intermediação.
No Cartaxo, por exemplo, a vontade dos seus residentes deveria ser atendida quanto à possibilidade de (não) edificação de ciclovias no centro da cidade. É uma daquelas situações em que os representantes do povo devem ouvir antes de apresentar decisões quase consumadas.