A revolta dos invisíveis
"A pergunta que se impõe a cada um dos partidos e aos muitos analistas políticos é simples, mas de difícil resposta, pela complexidade de razões que a traduzem: como chegámos até aqui e o que está a mudar na sociedade portuguesa? ", por João Fróis
“Democracia é a forma de governo em que o povo imagina estar no poder”. Carlos Drummond de Andrade definiu assim o que Winston Churchill afirmou como “a pior forma de governo à exceção de todas as outras tentadas ao longo da história”.
Em boa verdade a democracia tem sido amplamente criticada pelas suas muitas falhas, mas num mundo imerso em autocracias mais ou menos assumidas, continua a ser o menos mau dos regimes e aquele onde a liberdade tem espaço para sair dos livros e ser uma realidade.
Nas eleições legislativas de ontem, o povo português votou em liberdade e exerceu o direito que a revolução de Abril lhe proporcionou. E trouxe uma realidade nova que a muitos custa aceitar e interpretar, o fim do bipartidarismo entre o partido socialista (PS) e o partido social-democrata (PSD), partidos fundadores da democracia portuguesa. A ascensão meteórica do Chega desde a sua fundação em 2019, onde André Ventura era deputado único, estilhaçou o status quo de quase cinquenta anos entre o rosa e o laranja, impondo o azul como o espelho de uma sociedade emergente e em transformação acelerada.
As razões para o sucesso eleitoral do Chega serão muitas e nem todas são óbvias, mas uma coisa é certa, o efeito contrastante entre o seu crescimento e a queda abrupta do PS estão amplamente intrincadas e ajudam a explicar boa parte do fenómeno. Puxemos o filme atrás até 2015, ano em que António Costa quebrou a regra de “quem ganha, governa” e apeou Passos Coelho, vencedor das eleições, com a famosa geringonça de esquerda. Este abanão no velho status quo da governação iria propiciar a introdução em Portugal das manobras políticas useiras na velha Europa, para chegar ao poder e conseguir os entendimentos mínimos para formar governos. Por cá, o derrube do governo em março último foi a expressão caseira desta tendência maior na instabilidade democrática europeia.
Avancemos até 2017. O governo socialista, percebendo que a economia estava a braços com falta de mão de obra, decidiu abrir portas à imigração massiva com o chamariz da manifestação de interesse para obtenção do visto de procura de trabalho, permitindo aos seus titulares a permanência em território nacional até conseguirem um contrato de trabalho. Esta facilitação, aparentemente bondosa na sua génese, veio a revelar-se uma porta aberta para a entrada descontrolada de imigrantes do sudeste asiático, muitos deles às mãos de tríades que viram aqui uma via fácil de obter enormes lucros com a exploração de milhares de pessoas sedentas de uma vida melhor. Para piorar o cenário vem a perceber-se que Portugal está a ser uma plataforma rotativa de entrada na Europa para imigrantes que na verdade querem chegar aos países mais ricos do centro e norte do velho continente. E mesmo que também saibamos que muitos destes trabalhadores são pacíficos e que são eles que asseguram muito do que os portugueses não querem ou não sabem providenciar, o mal está feito e as famosas perceções fazem o resto.
Avancemos até 2023 e aos famosos “ralhetes” do então presidente da assembleia da república, Augusto Santos Silva, a André Ventura. Por mais de uma ocasião houve reprimendas pela postura e discursos do presidente do Chega, nomeadamente aquando da visita de Lula da Silva por ocasião das celebrações do 25 de Abril. Estes episódios, muito aplaudidos nas hostes da esquerda e até do centro do espectro político, foram amplamente difundidos na comunicação social, diabolizando Ventura como um “enfant terrible”, mais que irreverente, como um rufião. Será que o país real se reviu na arrogância institucional de Santos Silva ou se sentiu ofendido e humilhado tal como o presidente do Chega? Como em tudo na vida algures no meio estará a virtude, mas arrisco que a segunda terá sido muito mais impactante do que a primeira, fazendo crescer a popularidade do ofendido, cada vez mais o paladino dos sem voz e que encontraram nele o seu representante. A hora dos invisíveis estava a chegar. E ontem, nas eleições que Pedro Nuno Santos, qual rei dom Sebastião, arriscou tudo e onde veio a cair com estrondo, foi mais que a vencedora Aliança Democrática (AD), o Chega a mais capitalizar, vindo a obter um mais que previsível segundo lugar nos mandatos e podendo assim afirmar-se como líder da oposição e pasme-se, candidato a primeiro-ministro num futuro próximo. Tudo isto em apenas seis anos. À boleia do desnorte governativo da maioria absoluta de António Costa, com polémicas sem fim e com a sua “fuga” para o conselho europeu e com o bode expiatório da imigração, alvo fácil para arcar com os males da falta de habitações, com a insegurança e o medo da perda dos valores patrióticos e da identidade nacional. Tal como em muitos dos parceiros europeus, a braços com vagas populistas e que diabolizam a imigração, também por cá navegamos nessas águas turbulentas.
A pergunta que se impõe a cada um dos partidos e aos muitos analistas políticos é simples, mas de difícil resposta, pela complexidade de razões que a traduzem: como chegámos até aqui e o que está a mudar na sociedade portuguesa?
Quem melhor conseguir despir as antigas vestes do velho arco da governação e souber interpretar com humildade e avisada inteligência os amplos sinais saídos destas eleições, poderá colher dividendos e definir os rumos que melhor se coadunam com as legítimas aspirações nacionais. Os próximos tempos ditarão quem subirá aos céus, quem tentará sobreviver na incerteza do purgatório e quem descerá ao inferno. Para já o purgatório está com a sala cheia. De anseios, de sonhos, de medos e alguns pesadelos. Diria que tal como o mundo. Saibamos ser melhores do que temos sido até aqui. Esse é o nosso maior desafio. Assim seja!