A torre de Babel

"Tal como há cem anos atrás vivemos tempos de populismo. Mussolini, o criador do fascismo, conseguiu atrair para as suas hostes militaristas milhares de pessoas que procuravam um novo messias. Antes de cair em desgraça anos mais tarde, arrastou outros tantos milhares para a guerra e para a morte e só a pacificação pós 2ª grande guerra adormeceu o fascínio. Mas ele está de volta e em força, desta vez a uma escala mundial, com Donald Trump a liderar a estultícia egocêntrica de quem pretensamente tudo consegue resolver, atropelando a velha ordem das instituições e impondo as suas regras próprias", por João Fróis

Torre Pacheco, outrora desconhecida, anda nas bocas do mundo pelas piores razões. Intolerância, xenofobia, racismo, termos que infelizmente se tornaram comuns e até gastos de tão usados e propagados na comunicação social, saltaram para os telejornais e redes sociais quando os archotes iluminaram as ruas da antes pacata localidade andaluza. Esta localidade da província de Múrcia, sudeste de Espanha, saltou para os escaparates devido a uma reação extremada de grupos de jovens a uma agressão supostamente levada a cabo por imigrantes sobre um idoso. Durante várias noites o caos espalhou-se pela pequena cidade e a violência tomou as ruas. Cenas que poderiam ser nos arredores de Paris ou Marselha, Bruxelas ou Berlim ou mesmo Los Angeles. A Europa vive tempos particularmente acirrados com a extrema direita a cavalgar de espada em riste sobre tudo o que é diferente e ameaça a ordem “natural” da sociedade. Mas será que estes jovens e movimentos políticos conhecem a história da velha europa?

Antes das vagas de imigração do pós 2ª guerra mundial, já antes desta, no dealbar da 1ª, Adolf Hitler agitara os fantasmas da culpa externa dos males que quase destruíram a Alemanha. Os judeus, mas também os ciganos, foram eleitos como alvos a abater pelo regime e a sua aniquilação tornou-se obsessiva para a máquina de guerra de Berlim. Morreram mais de 6 milhões de seres humanos às mãos da mais hedionda barbárie da história recente no mundo. Mas pelos vistos a humanidade rapidamente esqueceu e parece nada ter aprendido com tamanho pesadelo.

Na ressaca da 2ª guerra mundial o mundo fez por se reerguer e equilibrar. Os caminhos foram árduos durante as décadas da apelidada guerra fria, com a criação do estado de Israel em 1948, criando um conflito insolúvel até hoje e com episódios sangrentos tal como acontecem nos dias que correm e as emancipações progressivas e turbulentas de dezenas de países africanos e sul americanos, fundando a sua independência face às potências europeias ocupantes, Reino Unido, França, Países Baixos, Bélgica, Espanha e Portugal à cabeça.

Nesta dolorosa ressaca e a estabilização do velho continente, com a melhoria progressiva das condições de vida, a imigração tornou-se o caminho óbvio para milhões de pessoas carenciadas nas ex-colónias europeias e que procuraram salvar-se nas oportunidades emergentes que esta tinha para se reconstruir. França é o exemplo paradigmático desta torrente imparável e que é particularmente visível nas equipas desportivas das várias modalidades, que invariavelmente são constituídas por filhos de imigrantes das ex-colónias africanas.

Também Portugal beneficiou das vagas de imigração para França, mas também Suíça e Alemanha, durante várias décadas e atualmente novamente em voga. Paris é a maior cidade mundial a falar português, com mais de um milhão de luso descendentes.

Servem estes exemplos para demonstrar que a velha Europa sempre foi multicultural e multiétnica. Relembrar que Lisboa era nos séculos XV e início de XVI a mais importante urbe planetária e já na época ali conviviam dezenas de povos que ali chegavam via marítima, uma autêntica torre de Babel. Esta cidade mítica, referida no livro bíblico do Génesis, teria sido criada para alcançar o céu, ousadia que terá desagrado a Deus e que o levou a confundir as línguas, criando a desordem entre povos e fomentando a sua dispersão pelo mundo. Esta alegoria que ajuda a tentar entender a profusão de línguas e povos no mundo, mostra também que face às diferenças surge o caos. A não compreensão do outro e a intolerância pelas diferenças culturais estão intrinsecamente entranhadas na evolução das sociedades e na história da humanidade ao longo de milénios. A guerra tem sido quase sempre o móbil para tentar a supremacia de uns sobre os outros e infelizmente ainda continuamos nessa senda sanguinária e tirânica, com a razão da força a se impor à força da razão.

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Tal como há cem anos atrás vivemos tempos de populismo. Mussolini, o criador do fascismo, conseguiu atrair para as suas hostes militaristas milhares de pessoas que procuravam um novo messias. Antes de cair em desgraça anos mais tarde, arrastou outros tantos milhares para a guerra e para a morte e só a pacificação pós 2ª grande guerra adormeceu o fascínio. Mas ele está de volta e em força, desta vez a uma escala mundial, com Donald Trump a liderar a estultícia egocêntrica de quem pretensamente tudo consegue resolver, atropelando a velha ordem das instituições e impondo as suas regras próprias.

Voltando a Torre Pacheco e de modo a perceber para lá das ligações político ideológicas a grupos de extrema direita, atentemos ao testemunho de um morador perante os acontecimentos: “a região é essencialmente agrícola e os espanhóis já não querem trabalhos pesados, debaixo do sol escaldante, preferindo trabalhos administrativos e alguém tem de andar nos campos”. Isto ajuda a explicar porque três em cada dez habitantes são imigrantes, maioritariamente oriundos de Marrocos e que encontraram na produção de melão o seu ganha pão. Na sua larga maioria são pacíficos e vivem ali há vários anos. Lembrar também que a apelidada ilha de plástico de El Ejido, em Cartagena, umas dezenas de quilómetros a sudoeste, com os seus milhares de estufas cobertas, produz há décadas os hortícolas que abastecem os mercados do país vizinho e onde os trabalhadores são 100% imigrantes, vivendo quase todos eles com parcas condições de salubridade e higiene. Qualquer semelhança com o que aconteceu no sudoeste alentejano há uns anos não é coincidência.

Temos assim uma Europa carente de mão de obra para a construção civil e agricultura e que é há muito assegurada por imigrantes que se sujeitam a viver com poucas condições e até dignidade. Confundir esta realidade incontornável com as vagas desreguladas de imigrantes que têm vindo nos últimos anos, nomeadamente em Portugal, é pouco sério e mostra as falhas na gestão migratória e o aproveitamento político das mesmas, com fins nem sempre óbvios. Regular é essencial mas sem imigrantes as economias europeias, tal como as conhecemos, colapsam. Encontrar equilíbrios assegurando direitos e a dignidade humanos é o desafio de Bruxelas. Têm a palavra os colarinhos brancos da máquina administrativa da união europeia e por cá os inquilinos de São Bento e do novel Campus XXI.

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