O calcanhar lusitano

"Por cá temos tudo caro e salários gritantemente baixos. Viver em Portugal é um exercício brutal e muitas vezes desumano. (...) O populismo tem sabido aproveitar o descontentamento crescente e está imparável no mundo ocidental. E a ganhar força e amedrontar os que acreditavam na eternidade da velha democracia bipartidária. O mundo mudou e quem não souber aceitar, interpretar e adaptar-se irá ficar para trás". Por João Fróis

Na mitologia grega Aquiles surge como um herói lendário, grande protagonista da célebre batalha de Troia, mas como em tudo na vida tinha um ponto fraco, o seu calcanhar, zona onde se alojou uma flecha troiana e onde o seu veneno o levou a sucumbir. A mãe de Aquiles, a ninfa Tétis, quis tornar o seu infante imortal e para tal banhou-o nas águas do rio Estige, mas para tal teve de segurar o seu filho e foi precisamente o calcanhar que não ficou imerso nas águas imortais. O herói fez-se homem e chefiou inúmeras batalhas onde saía invariavelmente vencedor, mas chegou o dia em que o seu praticamente indetetável ponto fraco o expôs aos desígnios da morte. Esta metáfora mítica mostra que mesmo as pessoas ou projetos notórios e com muitas valências podem perecer devido às suas fraquezas.

Portugal não foge a esta regra. Tem uma história admirável, foi gigante na era dos descobrimentos, abriu mundos ao mundo e transformou os seus destinos, unindo continentes e povos. Lutou contra castelhanos por séculos e resistiu às pretensões imperiais de Bonaparte, mas a um preço elevado. A ajuda inglesa foi determinante para almejar derrotar Napoleão e as contrapartidas permitiram a ascendência da maior potência mundial à época, com domínio sobre os nossos têxteis e vinhos e mais tarde impondo as suas regras na lógica do famoso mapa cor de rosa em África, impedindo-nos de unir Angola e Moçambique e poder assim criar uma região lusófona sem precedentes. A lei do mais forte imperou e o continente negro foi dividido entre britânicos e gauleses. A história conta o demais com as consequências que ainda hoje se sentem, entre guerrilhas constantes e interesses estratégicos delapidadores das riquezas naturais da imensidão africana.

Portugal, reino antigo e com grande tradição monárquica, quis apear a hegemonia ditatorial dos reis, impondo a república, sistema de cariz francês e que se implementou nas cinzas da mais rica e florescente realeza europeia. Espanha, Reino Unido, Bélgica, Países Baixos, Dinamarca e Suécia mantém-se monarquias, entretanto constitucionais, e não foi por essa razão que não evoluíram enquanto sociedades e se desenvolveram económica e socialmente, almejando figurar entre as mais fortes e notáveis nações mundiais. Por cá vivemos tempos conturbados após 1910, com convulsões sociais, movimentos fraturantes e instabilidade política constante. Salazar aproveitou este enquadramento para aos poucos impor a sua ordem, instaurando o estado novo em 1933 e que só caiu com o 25 de Abril de 1974. Este regime conservador, de cariz fascista, nacionalista e colonialista amarrou o país a uma lógica ditatorial e que mesmo nos mantendo fora da 2ª Guerra Mundial, nos paralisou e impediu que os ventos da reconstrução europeia dos anos 50 e seguintes nos guindassem a níveis de desenvolvimento económico, social e cultural a par dos demais parceiros do velho continente.

Saramago falou da jangada de pedra, de uma península ibérica, isolada da demais europa e entregue a ditaduras férreas durante mais de quatro décadas. Salazar e Franco percorreram os caminhos que Mussolini sonhou e vieram a cair, por cá com uma revolução pacífica, por lá com uma mortífera guerra civil e os seus estilhaços. Mas após a instauração das democracias acentuaram-se as diferenças, a favor de Espanha, que se reorganizou e fez por desenvolver cinturas industriais poderosas, criou vias de comunicação e transportes que as apoiassem e criou as pontes com França e os restantes países ocidentais numa lógica de crescimento imparável. Portugal não o fez e a emigração tornou-se a via de escape e sobrevivência para milhares de pessoas sem esperança e com fome. O país tinha enormes reservas de ouro, mas um povo iletrado, pobre e dependente do estado paternalista. Pelo meio exercia o poder com autoridade militarista, impunha a censura e impedia a atividade política. O país ficou embrutecido, mudo e sem força para mudar os seus destinos durante tempo a mais. A espinha antes revolucionária foi quebrada e o medo fez soçobrar os que ficaram. Só a revolução trouxe de volta a esperança com os ventos da liberdade. No entanto, e mesmo após um conturbado PREC, os desígnios nacionais foram ficando nas ideias, nos discursos e na alienação mirífica dos “salvadores da pátria” nos fervorosos comícios dos anos 80 e 90 do século passado. Pelo meio desperdiçámos os milhões que a CEE, à época, nos fazia chegar e que foram literalmente desbaratados por oportunistas de todas as fações.

Andamos desde esses tempos a tentar colmatar erros antigos e a atenuar o atraso face aos fortes e desenvolvidos parceiros da agora União europeia. Mas continuamos amarrados a estigmas, a paralisias estruturais incompreensíveis e a torrentes de opiniões e críticas que nada resolvem e só confundem o povo. Portugal é um país de treinadores de bancada. Têm a solução para todos os problemas, acham-se os detentores da verdade e sentem-se capazes de mudar o que teima em não querer evoluir. Uma farsa insuportável, mas que a cada ciclo eleitoral nos é servida em bandejas douradas que rapidamente desaparecem, deixando apenas a ilusão atrás de si.

Continuamos a ouvir que urge a mudança do famigerado “sistema” e que o prioritário é implementar a reforma do Estado. Seja lá o que isso significar, porque em boa verdade ninguém ousa entrar a fundo no que as ditas reformas obrigam. Eu ouso. Reformar o Estado irá obrigar a torná-lo mais pequeno, mais leve e ágil e sim, isso significa ter menos trabalhadores no setor público. Com a tecnologia atual, as potencialidades da informática e os novos mundos da inteligência artificial, estas mudanças serão a realidade, doa a quem doer. Saber percorrer este caminho sem deixar ninguém para trás é o grande desafio político dos próximos anos.

Ler
1 De 430

Outra reforma essencial é senão acabar, aligeirar a burocracia aos mínimos essenciais. Não é aceitável ter de esperar meses a fio por uma qualquer licença seja de construção ou investimento empresarial. Tempo é dinheiro e ter decisões em apenas alguns dias é fundamental. Para ontem. Sob pena de perdermos definitivamente o comboio do desenvolvimento. E não é compreensível que com o nível informático de hoje se tenha de ficar congelado a aguardar um documento. De uma vez por todas há que ter prazos curtos, compreensíveis e expectáveis. Só assim poderemos crescer.

Muito há por fazer, mas urgente é também baixar a carga fiscal. Não há competitividade com um nível de impostos alto. Em Espanha os combustíveis, os automóveis, os materiais de construção, os bens alimentares, todos beneficiam de taxas baixas e que permitem o investimento e a concorrência, mantendo o poder de compra atrativo e possível e fomentando o crescimento. Por cá temos tudo caro e salários gritantemente baixos. Viver em Portugal é um exercício brutal e muitas vezes desumano. E que invariavelmente tem levado a que muitos tentem trabalhar sob o imenso guarda chuva do Estado e beneficiar dos seus apoios. Apoios estes que se não existissem deixariam um terço da população na quase indigência, económica e social. Ora isto é inadmissível e insustentável. O populismo tem sabido aproveitar o descontentamento crescente e está imparável no mundo ocidental. E a ganhar força e amedrontar os que acreditavam na eternidade da velha democracia bipartidária. O mundo mudou e quem não souber aceitar, interpretar e adaptar-se irá ficar para trás.

O grande calcanhar português é a falta de visão, de estratégia e de coragem. Para passar das demasiadas ideias a ações concretas, bem planeadas e estruturantes, que não dependam da vertigem eleitoral e dos seus interesses obscuros. São Tomé tem de deixar de nos assombrar e temos de uma vez por todas de pensar e agir, sem delongas e sem desculpas. Só assim teremos futuro. Até lá vamos soçobrando aos poucos tal como as nossas florestas sucumbem à voragem dos incêndios. Haja coragem e determinação!

Isuvol
Pode gostar também