Restrições – Racionamentos

 

“Estorial, com ou sem história”, por José Caria Luís

José Caria LuísComo consequência do flagelo da II Guerra, certos hábitos e tradições das populações sofreram sérios reveses. Contudo, para a esmagadora maioria dos putos, houve uma coisa que se manteve fiel a si própria: a do caminhar pelo processo de pé-descalço. Tal como foi narrado na edição anterior, aqui, pelo concelho do Cartaxo, nada desse processo fora afetado; quem antes calcorreara de pé ao léu, poderia continuar a fazê-lo. As exceções aconteciam nos dias em que havia festa na terra, ou quando o fotógrafo (“a la minute”) se deslocava à Escola Primária para fazer o registo anual. Mesmo assim, nem todos iam a preceito, pois ainda restavam uns quantos renitentes, alérgicos ao calçado, que desalinhavam na observância do protocolo.

Inovações? Também as houve, reconheça-se esse facto. Alguém de dentro do Império Salazarista – ou ele próprio – resolveu implementar novas diretivas, que passavam a regulamentar o modo como cada um poderia adquirir os produtos alimentares na mercearia da esquina. Era um sistema de cadernetas, compostas por quadradinhos picotados, a chamada senha, onde, em cada uma delas, se designava o tipo de produto a levantar. De entre a ínfima gama contemplada, recordo-me do café, do açúcar, do arroz e das massas. O resto era adquirido nos candongueiros locais, por meio de cunhas e a bom preço.

O cardápio das refeições era muito monótono. Pela manhã, uma tijela de café com borras, salpicado de leite. Esse leite, de cabra ou de vaca, que a leiteira local, no seu périplo do porta-a-porta, havia deixado no portal. O almoço, quase sempre com base em batatas e mais batatas, tinha como ornamento uma lasca de bacalhau ou uma metade de sardinha por cabeça (comensal). Quantas vezes a sopa do jantar fora confecionada com recurso a ervas recolhidas nas valetas e cômoros rurais, como urtigas, acelgas, cardos e ineixas… Desde que fosse coisa verde, quase tudo era utilizado para compor a panela da sopa. Mas não depreciemos tais iguarias, porque, se, na época, eram cozinhadas como único recurso, hoje, na segunda década do séc.XXI, parece que tais vegetais voltaram à mesa dos tugas, quanto mais não seja pela singularidade.

Quando, no dia da Feira ou da Festa, se matava uma galinha, era mesmo uma “festa”. A galinha era nada e criada no quintaleco do casebre, mas o arroz que a acompanhava fora adquirido por meio das tais senhas de racionamento.

Ler
1 De 422

Na cozinha rural, sobre a lareira, crepitava o brando lume, feito com cepas, cavacos, ramos ou vides. Os cavacos podiam ser adquiridos no Maurício, em Pontével, na Amélia Serafana, em Vale da Pinta, ou na carvoaria do “pé-descalço” e sua ajudante, a esposa Amália, no Cartaxo. Isto, entre os anos 40 e 50. Mas, devido às limitações financeiras da época, havia muita gente que solucionava a carência deste tipo de combustível de outra maneira: os conhecedores do meio rural percorriam as cercanias e deitavam a mão a tudo o que lhes dava jeito. Assim, já havia lume para todos: tanto para os que pagavam, como para os que roubavam. Era o despontar da democracia. Mas os fogareiros a petróleo, não tardariam por aí.


 

Isuvol
Pode gostar também