Se lá é mirandês, cá seria cartaxês (IV)

Crónica de José Caria Luís

Quem só agora, através do presente capítulo, tomou contacto com este memorial de palavreado à moda do Cartaxo, nem sabe o que perdeu. No entanto, se demandarem as tiragens dos Jornais de Cá, ou espiolharem o site do mesmo, verão a raiz que fundamenta esta saga linguística.

Como ia dizendo, era no nosso meio rural que mais se manifestava tal padrão. O relacionamento entre vizinhanças tocava os extremos: ora praticavam a solidariedade, tentando ajudar no que lhes fosse, ou não, possível, ora denegriam e infernizavam a vida alheia. Fazendo fé na primeira, era certo e sabido que de cada vez que um dos putos vizinhos tinha uma qualquer maleita, como, por exemplo, bexigas doidas, sarampo, lombrigas, amigdalite, “obcessos”, caspa, piolhos ou pulguedo, todas tinham um ótimo remédio para debelar tal mal. Ora, como o médico morava longe e o orçamento de casa era curto, era a ver qual a que mais se evidenciava na análise dos sintomas, no diagnóstico e, ainda mais, na terapêutica. Como o Chico “espilrrava” muito, tossia ainda mais e andava sempre a “acochar-se”,a vizinha Laura, ao aperceber-se de que o almoço tinha sido “cecharro” frito com “xixos”, defendia que se lhe devia ser aplicado um “culster”; uma outra, a Arminda, achava que melhor seria aplicar uns pachos de álcool no peito, umas ventosas nas costas, uma zaragatoa, ou mesmo um Vick-Vaporub nas fuças. A Albertina advogava que aquilo podia ser coisa séria: até podia dar uma coisinha má ao “desinfeliz” do garoto. O facto de ela já estar saturada de ouvir o Chiquinho a tocar “chelantra” rua abaixo, rua acima, dava-lhe todo o direito de, em silêncio, desejar que o puto se mantivesse enfermo por muitas e boas semanas. Além do mais, o gajo já lhe tinha “esborrondado” a parede acabadinha de ser caiada, por mais que uma vez. Foram muitas as vezes que a Albertina teve vontade de “expuldir”e aplicar-lhe duas “galhetas”, “amalçoando-o”, desejando mesmo que o dito fosse acometido de uma “bacera”, mas para não arranjar problemas com a mãe daquele, uma valente “lavasca”, mulher sem “trambelhos”,que nem sabia “azelar” o filho, mais lhe valeu ter ficado quieta e calada.

Realmente, toda a vizinhança detestava o Chico, mas nós, que o conhecíamos bem, sabíamos que nem tudo o que dali saía era coisa má. Se excluirmos as ações de armar “ratoeiras” aos pássaros e a pombos – a tudo que não fossem ratos –, soprar, através de um canudo de palha, no enchimento do ventre de uma “arrã”, ir à caça de “sampexugas”, no tanque do Manuel Vieira, e colocá-las nas cuecas dos colegas que estavam no banho – porque ali, à época, praticava-se a nudez pura e crua –, ou, ainda, deitar fogo às paveias de trigo amontoadas na eira do Francisco de Almeida, em tudo o resto era um rapaz exemplar. Como diziam as velhas, gostava de andar sempre no “calharô”, mas isso gostávamos todos. Quando muito, seria um rapazola com uns parafusos mal “atarroxados”.

O propósito da escrita destes capítulos, entre I e IV, além da curiosidade que pode suscitar, será o de dar ênfase a um dialeto regional que, não tarda, poderá esfumar-se nas novas tecnologias.

*Artigo publicado na edição de dezembro do Jornal de Cá.

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