Aos alucinantes gritos de “fugiu o touro!”, o pânico tinha-se instalado no terreiro e ruas contíguas. Havia pessoal que, desorientado, julgava fugir do boi, mas sem saber bem para aonde. Gente que fugia, só porque via outros a dar à sola e eram arrastados nessa debandada. A verdade, porém, é que a maioria nem sequer viu touro algum. Mas lá que o bicho tinha fugido, isso tinha.
Agora, era o bonito! Aproveitando o generalizado tresmalhar, alguns gabirus forasteiros, vindos sabe-se lá de onde, tirando partido da onda tumultuosa instalada, deram em saquear e ensacar tudo o que podiam. Nem as tendas dos ciganos escaparam, coitados.
Entretanto, para confundir ainda mais a situação, começaram a chover boatos da mais variada ordem: o João Preto, aconselhando calma, afirmava que o animal já estava em segurança, pois tinha sido laçado pelos bombeiros, mesmo em frente à montra do Zé Lanheiro. Uma tamanha falsidade, que o bombeiro Edmundo da Caraga se apressou a desmascarar. Segundo o Edmundo, o boi foi visto a caminhar junto à Fonte do Pingo-Pingo, rumando pela EN3, no sentido de Lisboa. Essa é que, para ele, Edmundo, era a verdade. Outro trapaceiro! Na verdade, uma hora depois, o Joaquim Domingos, vindo de Valada, trouxe a notícia de que o touro tinha sido laçado pelos campinos, perto da Quinta da Aramenha.
Tendas rasgadas, bancas viradas do avesso, mercadoria surripiada e meia dúzia de feridos, era o saldo negativo apurado em primeira instância. Muito do pessoal que, num instinto de defesa, se tinha amotinado nas estreitas ruelas perpendiculares ao terreiro, começara a dispersar. Aqueles que se tinham refugiado nas tabernas do Paulino, Paveia, e Etelvino, bendiziam a hora em que o fizeram, pois não correram qualquer risco. Porém, o grupo situado mais a norte, que, em tropel, imbuído de um instinto de sobrevivência, se apressara a invadir a tasca do Serrazina, não teve a mesma sorte, porque o arcaico e antissocial taberneiro, numa atitude desprovida do mais elementar humanismo – talvez por ter escutado o slogan “fugiu o touro!” – expulsou o pessoal invasor, acabando por lhes fechar as portas na cara, trancando-as pelo interior. Por milagre, ou obra do acaso, o boi tinha rumado a sul.
Na manhã do dia seguinte, as coisas já estavam, de algum modo, estabilizadas. Como era tradição na Feira dos Santos, o espetáculo taurino nesse segundo dia era uma vacada. Ora, tendo em conta que os acontecimentos da véspera teriam sido uma lição para todos, seria de esperar que nesse dia tudo iria correr pelo melhor. Mas de uma coisa todos tinham a certeza: o touro não fugiria. Se palavras leva-as o vento, mais longe irá um grito. Eis senão quando, um grito, emanado de alguém que se encontrava perto do touril, ecoou no ar: “fugiu o touro”! Eh, diabo!… Não podia ser! Ah, pois! Tratando-se de uma vacada, quando muito, o que fugiria seria uma vaca. Foi quando um grupo de malta da terra deitou a mão ao gritão-mor, que tinha mais de golpista do que de aficionado e que nem sabia destrinçar a diferença entre um boi e uma vaca.
Assim, a “Feira dos Diabos” não passou de uma má intenção.
Crónica publicada na edição de novembro do Jornal de Cá.