A distopia mundial

"No dia em que se assinalam 3 anos da odiosa invasão da Rússia à Ucrânia, mais que a guerra no terreno, vivemos tempos de absurdo, em que os limites do aceitável foram vaporizados nas asas do populismo e da ânsia de poder". Por João Fróis

Se após a 2ª guerra mundial, a Europa pôde sarar as feridas e reconstruir-se económica e socialmente, a cedência no campo militar mais do que conveniente, alimentou a dependência face aos EUA, entretanto assumidamente a polícia do mundo e entregues a disputarem o domínio planetário com a musculada URSS. Esses tempos de guerra fria criaram a ilusão de que o chapéu protetor da América do Norte seria inquestionável e que a NATO iria garantir os equilíbrios necessários de modo a que não se voltassem a criar condições para novas guerras à escala mundial. Ora o que vemos agora é que essa ilusão acabou às mãos de Trump. A Europa tem de acordar desta letargia e assumir que o “irmão” do outro lado do atlântico mudou e tem outros planos. Se dúvidas houvesse, o entendimento que Trump está a construir com Putin, hostilizando Zelensky, de modo a forçar o fim da guerra na Ucrânia, deixando a Europa de fora das negociações, mostra que os EUA olham para o velho continente com indiferença, apontando os focos para o seu adversário global, a China.

Entretanto a União Europeia, EU, tem em mãos vários dossiers fulcrais e que irão ditar os destinos de todos nós nas próximas décadas. O desafio maior será conseguir que os 27 membros encontrem consensos sobre os rumos da economia, da defesa, da livre circulação de pessoas e bens, imigração e segurança, tarefas hercúleas atendendo ao clima de intensa heterogeneidade política existente nos principais países da união. Ainda ontem a Alemanha, conhecida como o motor da economia europeia, foi a votos e os resultados, não sendo surpreendentes face às projeções, levantam novas questões sobre os entendimentos do posicionamento dentro da UE e desta com o mundo. A CDU voltou a ganhar as eleições, fazendo a habitual alternância com o SPD de Scholtz, o grande derrotado da noite, principalmente com a ascensão a segunda força a AfD, o partido de extrema-direita e que fez bandeira com a base do lema de Trump para um “make Germany great again”. As aproximações às políticas protecionistas do presidente americano surgem num quadro de crise do motor alemão, muito pelas dificuldades de adaptação ao automóvel elétrico e à competição feroz da China, com preços imbatíveis.

Aqui vemos outro dos grandes problemas da união, o desfasamento entre o(a)s político(a)s e as empresas. A EU fez da bandeira da transição energética um cavalo de batalha, obrigando a constantes constrangimentos na produção dos motores a combustão e promovendo a alternativa da eletrificação na mobilidade. Ora vemos agora que cometeu um erro crasso, dando de mão beijada a vantagem à gigantesca máquina industrial chinesa, que consegue produzir veículos a preços insuportáveis para os europeus. E isto com a ajuda do estado chinês, apoiando as exportações e suportando parte dos custos de modo a garantir uma competitividade sem igual. Enquanto isso a UE entope as empresas com taxas e burocracia, dificultando ainda mais um setor onde trabalham 14 milhões de pessoas e que representa uma fatia enorme no PIB alemão.

A juntar a este cenário complexo temos as diferentes visões sobre as migrações e o controlo de fronteiras. Scholz perde as eleições muito pela crise económica e pela polémica gestão das migrações, alimentando as bandeiras populistas da AfD, nomeadamente onde os saudosistas do controlo ainda vivem, na velha Alemanha de leste. A história volta a mostrar que há cicatrizes que nunca saram verdadeiramente e que a segurança facilmente capitaliza quando a liberdade vacila e fragiliza o bem estar dos cidadãos. Os vários ataques terroristas com automóveis em feiras, levados a cabo por imigrantes muçulmanos, fez despertar os alarmes da insegurança e trouxe o medo de volta, e neste capítulo a extrema direita sabe fazer valer os seus sound bites como ninguém.

Donald Trump usa e abusa da velha tática que Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, trouxe: “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. E se os mais atentos se revoltam com as constantes mentiras e distorções da verdade, pior ficam quando percebem que estes discursos distópicos colhem milhões de apoiantes. Tanto que o retorno de Trump à presidência dos EUA se tornou quase um passeio, explorando as debilidades democratas com mestria e arguindo chavões em catadupa como arautos da verdade. E é esta tática, não por coincidência, também usada por Vladimir Putin, que os partidos da extrema direita vão esgrimindo sem pudor, cavalgando o medo e as famosas perceções que as redes sociais agigantam em velocidade meteórica. A tecnologia transformou-se na grande manipuladora mundial. Ao mesmo tempo que restringe a informação e os conteúdos, distraindo e entretendo, dissipa fake news numa vertiginosa e massiva torrente a que quase ninguém escapa. Conseguir distinguir a verdade da mentira será provavelmente um dos mais complexos exercícios do mundo tecnológico onde estamos imersos. Basta atentar aos vídeos de políticos famosos a debitarem frases polémicas, como verdades absolutas, quando na verdade são (ab)usos da inteligência artificial e distorções maliciosas com intuitos de manipulação de opinião.

Vivemos num clima de alienação, de incerteza e insegurança latentes. Se na verdade o mundo sempre foi perigoso, antes a perceção sobre tais realidades era de difícil acesso ao comum mortal. Hoje, através de um smartphone, somos expostos a tsunamis de (des)informação, arregimentando as mentes mais fracas e aliciáveis para cultos a pretensos líderes que, tal como outrora, prometem arrumar o caos e trazer de volta a segurança, expulsando os que estão a mais. A história mostra para quem a quiser estudar que estes assomos ditatoriais forjaram ao longo de séculos e sobre os cadáveres de milhões de inocentes, os destinos do mundo. Seria curial ter aprendido com esses horrores a evitar a sua repetição, mas assistimos, incrédulos, ao regresso a essa distopia assustadora que há apenas 80 anos atrás pôs um mundo numa guerra medonha.

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Cabe à Europa, talvez um dos últimos guardiões da liberdade e da defesa dos direitos humanos tais como os conhecemos, a arrepiar caminho e a saber resolver as suas crises intestinas e a arrogar-se como farol dos grandes princípios e valores da revolução francesa, sempre atuais e cada vez mais urgentes.

É o tempo da Europa se assumir e mostrar que a economia é importante, mas não basta, há que providenciar a segurança entre todas as nações e fomentar a confiança onde grassa o medo. Para tanto tem de se voltar a armar. Será que os fantasmas de outrora o vão impedir ou o receio do grande urso do Nordeste vai falar mais alto? Têm a palavra os (fracos) líderes do velho continente e todos nós, eleitores, que não esquecemos a história e não a tentamos maquilhar em prol dos desvarios de ditadores. Haja coragem!

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