Se dúvidas houvesse que os direitos humanos são engolidos pela força do dinheiro, a realização do polémico mundial de futebol a decorrer no Qatar, mostraram-no despudoradamente. Pior mesmo é ver a festa em torno dos jogos abafar num silêncio ensurdecedor os milhares de mortes dos migrantes que construíram os majestosos estádios onde competem os melhores futebolistas mundiais.
Um jogo de futebol é um espetáculo desportivo que deveria ser apenas isso, mas infelizmente é quase tudo menos o que deveria ser. Transformou-se numa indústria poderosa de compra e venda de passes de jogadores e numa montra que a FIFA dourou, lavando dinheiros tóxicos, sem questionar as suas origens, alimentando ligas e competições milionárias, em absurdo contraste com um mundo caótico, com milhões de mortes pela fome e por guerras intermináveis a diferentes escalas.
Decidir por atribuir a realização do maior evento desportivo à escala mundial a um país como o Qatar, revela a face negra de um organismo tutelar que se arroga defensor do que esse mesmo país não professa, a defesa dos direitos humanos na sua plenitude. Este pequeno país da península arábica é uma monarquia absolutista com a mesma dinastia reinante desde 1825, tendo sido parte do antigo império otomano até à 1ª guerra mundial, passando a protetorado do império britânico a partir de 1916 e só se tornou independente em 1971. Três anos depois a Qatar petroleum desenvolve a exploração das jazidas de petróleo com o sucesso que se conhece, valendo esta fonte mais de 50% do PIB nacional e tornando este território de apenas 11 mil km quadrados e 3 milhões de habitantes, um dos mais ricos do mundo.
O Qatar é um dos regimes autoritários que juntamente com quase todos os vizinhos do médio oriente, grande parte de África, China e Rússia, representam cerca de 32% dos 167 países considerados na amostragem do organismo internacional “the economist intelligence unit”, onde são excluídos os microestados. As democracias representam no seu conjunto cerca de 45%, sendo as plenas apenas 13% e as com falhas um valor idêntico ao dos regimes autoritários. Restam os regimes híbridos com cerca de 22% do total.
Temos um mundo muito desigual e que perpetua as enormes tensões políticas, económicas, sociais e culturais, como a absurda guerra na Ucrânia prova diariamente. Mas são os direitos humanos que mais revelam as diferenças, abissais, entre regimes. O regime do Qatar expulsou uma mulher que assistia a um jogo de futebol por usar um t-shirt com a fotografia de Mahsa Amini, a jovem que morreu às mãos da polícia iraniana recentemente, mas permitiu que a ministra da administração interna da Alemanha usasse a já famosa braçadeira “one love” contra a discriminação LGBT, mostrando ser forte com os fracos e fraca com os fortes. Mulheres que no Qatar têm de ter permissão dos seus tutores masculinos para casar, estudar trabalhar em empregos públicos, viajar e receber cuidados de saúde reprodutiva.
O Irão, sendo país vizinho e um regime igualmente opressor e com uma revolta popular em curso, foi defendido pelo emirado, mesmo que os jogadores não cantassem o hino. Já a Alemanha, a mais poderosa economia europeia, não poderia ser desautorizada de forma tão evidente e foi assim que a ministra ostentou orgulhosamente a braçadeira como um grito em defesa das minorias e dos direitos de autodeterminação. No entanto terá sido apenas mais um, abafado e submerso num mar de indignidades a que este mundo imoral nos levou. Porque tal como a banda de rock inglesa Queen gravou para a posteridade em 1991, “the show must go on”.