Opinião de Elvira Tristão
Os sistemas educativos não são imunes à ideologia, entendendo a ideologia como um ideal de sociedade e não como um qualquer alinhamento político-doutrinário. Os sistemas educativos podem configurar-se mais conservadores ou mais progressistas, mais orientados para finalidades económicas ou para finalidades humanistas e desenvolvimentistas. Independentemente dos ideais societários subjacentes aos sistemas educativos, estejamos conscientes de que os estados-nação se socorreram da educação para regular o papel dos cidadãos na organização social.
A título ilustrativo, o desenvolvimento do paradigma do capital humano nos finais da década de 1970 tem associados objetivos economicistas de desenvolvimento de trabalhadores e de quadros técnicos. De igual modo, algumas décadas mais tarde, o paradigma da aprendizagem ao longo da vida vem dar resposta ao rápido desenvolvimento científico e tecnológico para o qual os cidadãos devem estar preparados, contrariando assim os riscos de exclusão social, das iliteracias, e de inadequação funcional no mercado de trabalho, ou mesmo para promover o envelhecimento ativo. De uma maneira ou de outra, para lá das finalidades humanistas e desenvolvimentistas da educação, as orientações educativas sempre tiveram um pendor produtivista e economicista no sentido da criação de valor no trabalho e nas economias que, nas últimas décadas, se foram desenvolvendo num quadro competitivo entre nações e blocos geoestratégicos.
Em pleno século XXI, a organização da escola e do currículo tem dificuldade em adaptar-se às exigências próprias de um mundo digital, de uma sociedade em rede onde o risco e a incerteza se tornaram ameaças emergentes. A escola está, assim, já há algumas décadas, numa crise de paradigma. A escola, “inventada” em finais do século XIX, apresenta uma organização universalmente reconhecida, estruturada num modelo de saberes disciplinarmente compartimentados que são regularmente objeto de avaliação e certificação no que concerne às aprendizagens realizadas pelos alunos ao longo de um sistema de escolarização obrigatória em cada país. Não obstante a crise de paradigma, muitas coisas mudaram. Mas a “gramática” da escola continua basicamente a mesma, caracterizada pela compartimentação dos saberes, dos tempos e dos espaços.
O desenvolvimento exponencial das novas tecnologias de comunicação e informação, os novos processos produtivos e a sociedade em rede em que nos inserimos têm vindo a obrigar a escola a rever os seus processos de ensino e de aprendizagem, e de avaliação. A avaliação por competências tem vindo a substituir a avaliação estrita e simplificada dos conhecimentos, promovendo situações complexas de aprendizagem (e de avaliação), exigindo situações de transversalidade curricular.
O Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, o projeto de autonomia e flexibilidade curricular e o Plano Nacional das Artes são políticas curriculares recentes que representam importantes alavancas para a reconfiguração dos processos pedagógicos, mas também dos processos organizacionais e profissionais. Mas estas políticas só constituirão alavancas de mudança se estivermos conscientes da sua necessidade, se entendermos que este não é um trabalho solitário e muito menos burocrático, e se concebermos a mudança como facilitadora do nosso trabalho e enriquecedora para as aprendizagens dos nossos alunos e para a valorização das comunidades escolares educativas. Por fim, importa ter presente que esta tem de ser uma “agenda” coletiva no sentido do bem-comum, afinal, missão fundamental da escola.
O mandato da escola vai sendo renovado em função de novas exigências da sociedade em mudança. Mas as mudanças não são processos simplificados de substituição de procedimentos. As reformas comportam sempre a necessidade de uma aprendizagem organizacional e coletiva nem sempre de simples execução. E é por isso que as escolas têm de se assumir como “organizações aprendentes”.
*Artigo publicado na edição de abril do Jornal de Cá.