O país dos milagres
"Vermos um país a pedir aos atletas que o representam, e que parcos apoios têm, ganharem medalhas nos jogos olímpicos é surreal ao nível da utopia e só compreensível para quem (se) alimenta da crença salvífica dos milagres". Por João
Quando falamos em milagres é inevitável pensar em Fátima e em todo o seu ideário religioso surgido com as aparições da virgem aos três pastorinhos em 1917. O culto a N. Sra de Fátima é fervoroso e move milhões de fiéis católicos e continua bem vivo na sociedade portuguesa e além-fronteiras. Mas mais que os milagres associados aos santos da igreja católica apostólica romana, o que mais impressiona é a crença popular que em Portugal se mantêm de que é possível almejar a mais do que à partida é suposto alcançar, devido a fatores externos. E se não for pela inusitada sorte, ou azar, cabe à derradeira esperança bafejar-nos ou compensar a manifesta incapacidade ou competência para mais altos voos. E uma vez mais foi assim que fomos aos jogos olímpicos na cidade luz, engalanada para receber os melhores em todas as muitas modalidades desportivas em competição.
Culturalmente estamos a anos-luz dos melhores, não porque não tenhamos tradições ancestrais e gente muito digna a trabalhar com afinco na sua manutenção, antes porque não possuímos estruturas capazes de nos guindar a patamares mais altos.
Somos um país pequeno, não tanto em tamanho pois muitos há bem menores em território, mas em preparação, com tudo o que a envolve. Culturalmente estamos a anos-luz dos melhores, não porque não tenhamos tradições ancestrais e gente muito digna a trabalhar com afinco na sua manutenção, antes porque não possuímos estruturas capazes de nos guindar a patamares mais altos. E tal como na economia, também no desporto não há milagres, por muito que os desejemos, seja para nos afagar o ego, seja para disfarçar (mal), as nossas torpes condições sociais, culturais e financeiras.
O nosso comité olímpico levou a Paris 73 atletas em 15 modalidades. Jogos que tiveram 48 modalidades e mais de 10 mil competidores em 329 eventos entre Paris, arredores e as ondas do Tahiti a 15 mil quilómetros da cidade luz. Participaram 204 países mais a equipa dos refugiados, havendo participações com apenas um atleta como a Somália, o Belize, Nauru e o Liechtenstein. Os mais poderosos continuam a ser os habituais EUA e China, com a exclusão da Rússia por motivos óbvios, a Austrália e Japão e a nível europeu a França, Inglaterra e Itália. A vizinha Espanha surge a nível intermédio nas conquistas, 18 medalhas, sendo 5 de ouro, mas em destaque no número de participantes e modalidades e no nível competitivo em quase todas. A nível idêntico surge a Hungria, a rondar igualmente os 10 milhões de habitantes, ainda atrás de Portugal no PIB mas com fortes tradições desportivas e olímpicas. Em Paris obteve 19 medalhas, sendo 6 de ouro. Desde 1896 em Atenas, conseguiu mais de 500 medalhas, sendo 181 de ouro. Portugal que só começou a competir em 1912 em Estocolmo, obteve apenas 32 medalhas no seu historial, sendo 6 de ouro. As diferenças são abissais e há imensas razões por detrás destes números tão díspares.
Num país que praticamente só olha para o futebol, o fenómeno dos três clubes grandes ajuda a explicar parte do problema. Ao contrário dos demais países europeus e por esse mundo fora, onde os adeptos puxam maioritariamente pelo(s) clube(s) da sua cidade, em Portugal quase toda a população escolhe ser adepta de um dos três maiores clubes nacionais, seja o SLB, o SCP ou o FCP, com honrosas exceções regionais onde o Vitória Sport Club, sito em Guimarães, se destaca tal o fervor de quem nasce e vive na cidade berço por todos os símbolos da sua identidade. Depois os chamados desportos amadores conhecem alguma expressão, mas muito assente em clubes históricos que desde cedo as apoiaram, casos do voleibol em Espinho ou do basquetebol na região de Aveiro, onde a Ovarense, o Illiabum de Ílhavo ou o Esgueira são porta estandartes da modalidade nascida nos EUA e com adeptos pelo mundo inteiro. O mesmo se passa com o hóquei em patins, modalidade em que somos dominantes junto com Espanha, Itália e Argentina e onde além dos grandes, clubes como o Hóquei de Barcelos, o Valongo, Oliveirense e Sanjoanense e os mais pequenos Tomar e Turquel, ilustram uma regionalidade que o futebol não consegue acompanhar em relevância.
Vemos as crianças portuguesas com níveis de motricidade preocupantes e uma crescente sedentarização aliada à tecnologia. Na verdade, cada família tem de fazer um esforço para achar clubes onde os seus filhos possam desenvolver uma modalidade desportiva e quase sempre a expensas próprias.
Mas olhemos para a prática desportiva no país. A educação física continua a ser, 50 anos volvidos desde o 25 de Abril, uma disciplina menor no calendário escolar. Vemos as crianças portuguesas com níveis de motricidade preocupantes e uma crescente sedentarização aliada à tecnologia. Na verdade, cada família tem de fazer um esforço para achar clubes onde os seus filhos possam desenvolver uma modalidade desportiva e quase sempre a expensas próprias. O já famoso “paitrocínio” tornou-se angular e sem ele só os melhores seriam escolhidos pelos principais clubes e teriam acesso a praticar a sua modalidade de eleição, deixando de fora milhares de crianças. Os pais, perante a quase inexistente oferta pública de qualidade na prática desportiva, são obrigados a procurar alternativas em clubes, ficando restritos á oferta que estes disponibilizam e esta concentra-se nas modalidades com mais procura.
Em Espanha há décadas que se investiu na prática desportiva universal. A educação física é fomentada nas escolas e a oferta é ampla, incentivando a sua prática e democratizando o seu acesso. Não é por acaso que o país vizinho se tornou uma potência desportiva e muito para lá do futebol. Basta olhar para o basquetebol, andebol, hóquei em patins, ténis, atletismo, ginástica, vela e canoagem, natação e outras tantas modalidades onde se enchem pavilhões quer de praticantes, quer de assistentes apaixonados e entusiastas. Existe uma política pública desportiva, com equipamentos de qualidade nas escolas e nos jardins e parques públicos, onde vemos crianças e jovens a praticarem desporto e a conviverem salutarmente.
Por cá é o que sabemos. Desporto entregue quase na totalidade a clubes, sendo estes dependentes das quotas pagas pelos pais das crianças e jovens praticantes. E a natação, que antes do mais é e deveria ser uma competência escolar e para a vida, continua a ser vista como acessória o que não deixa de ser um triste paradoxo num país com 700 quilómetros de costa e centenas de praias e outras tantas fluviais. Perceber que em 2023 morreram mais de 150 pessoas por afogamento em Portugal é chocante. Porque por detrás destes números trágicos e lamentáveis existem lacunas muito graves na oferta pública do ensino da natação e na sua disponibilização a nível escolar. Entendo mesmo que a natação deveria ser obrigatória nos 1º e 2º ciclos e que a educação física tem de ser estruturante e nuclear no ensino, a par da matemática e do português. Perdoem-me os mais sensíveis, mas é absolutamente inaceitável que continuem crianças e jovens a morrerem no mar e nos rios por não saberem nadar. No limite o estado português deveria ser chamado ao tribunal europeu dos direitos do homem por não fazer do ensino da natação uma prioridade nacional. Tenho dito.
Vermos um país a pedir aos atletas que o representam, e que parcos apoios têm, ganharem medalhas nos jogos olímpicos é surreal, ao nível da utopia e só compreensível para quem (se) alimenta da crença salvífica dos milagres.
Posto isto, pedir que os honrosos atletas que foram a Paris vistam a capa de super heróis e nos possam resgatar das nossas imensas falhas estruturais e culturais, é acrescentar-lhes uma pressão que não deveriam ter sobre os seus ombros, para lá da que já colocam sobre si mesmos. Basta ver o desespero do fenomenal Fernando Pimenta, um super atleta que teve a infelicidade de soçobrar na final de K1 dos mil metros na canoagem. E perceber o quão falhado se sentiu por ter estado quase sempre ausente da família e dos filhos para treinar incessantemente para atingir o ouro olímpico. Vermos um país a pedir aos atletas que o representam, e que parcos apoios têm, ganharem medalhas nos jogos olímpicos é surreal, ao nível da utopia e só compreensível para quem (se) alimenta da crença salvífica dos milagres. Portugal precisa de uma nova revolução, mas que cabe a cada um de nós exigir de quem nos governa, a mudança consistente de mentalidades e do estabelecimento de prioridades que nos possam guindar a novos patamares da evolução social e cultural enquanto sociedade. Obrigado e boa prática desportiva.