Opinião de João Fróis
Vivemos tempos complexos em que quase nada parece ser o que foi outrora. O clima está caótico, veja-se a seca extrema que atinge 94% do território em pleno inverno, a economia está a sofrer as agruras do fechamento que a pandemia provocou, originando níveis de especulação e inflação nunca vistos em tempos de Euro, a sociedade espartilhada entre defensores e opositores de tudo o que seja polémico e mediático, com as vacinas à cabeça de porta estandartes dos direitos, liberdades e garantias face ás ameaças sobre estes pilares da democracia.
Por cá estamos na reta final antes das eleições, com arruadas encenadas para as televisões e tentativas mais ou menos conseguidas de captar votos, após debates à americana, curtos e mais dados à imagem do que ao conteúdo. Mas o melhor está mesmo reservado para o final, qual sobremesa de “eleição”. Com o disparar, expectável e bem avisado com antecedência pelos especialistas, dos números de infeções de Covid-19, estima-se que possam estar em isolamento cerca de um milhão de eleitores no dia 30 de janeiro. Face a este devastador tsunami nas potenciais votações, temos assistido a uma profusão de reuniões para decidir qual o modelo a aplicar de modo a que os isolados não fiquem privados de votar.
Sabemos que a política e os seus interesses tudo põem a mexer quando a urgência de votos toca a rebate. E num panorama que se pressupõe de enorme fracionamento eleitoral, o receio de que entre os isolados esteja o filão que potencialmente garanta a vitória ou a salvaguarda de mandatos, originou mais um atropelo ao bom senso e ao modelo normativo que tem vigorado até aqui.
Permitir que os isolados possam sair para ir votar já é uma exceção perigosa que põe em causa a tão defendida(?) saúde pública, mas pedir que se concentrem entre as 18h e 19h já roça a utopia e a indignidade e abre a porta a cenários socialmente reprováveis. Pode muito bem acontecer que perante a possibilidade de infetados poderem ir votar a qualquer hora do dia, afinal apenas se sugere um horário, nada sendo imposto, muitos poderão evitar a ida às urnas com medo de ficarem infetados. Pode igualmente gerar tensões em assembleias de voto pequenas e onde todos se conheçam, despertando julgamentos e censura social numa estigmatização que nunca foi assumida mas sempre foi acontecendo nas sombras sórdidas do medo. A defesa do direito de voto é propalada aos sete ventos como arauto maior da democracia e a verdadeira voz do povo e como tal tem de ser defendida até ao limite. Mas então e a defesa da saúde pública, milhares de vezes acenada, entre a arrogância e o moralismo, como bem maior da sociedade? A verdade é que o verniz estalou e mostrou a face negra da política uma vez mais. Se são os votos que legitimam o poder então nada pode pôr em causa que possam entrar nas urnas e ditar vencedores e vencidos. Curiosamente, em quase 50 anos de democracia, o adamastor da abstenção nunca foi devidamente afrontado nem tão pouco se viram reais medidas para que a dissociação entre eleitores e eleitos fosse crescendo, abrandando o desligamento social do fenómeno político. E no limite pode bem acontecer que nesta aritmética entre os isolados a quem se permite votar e os que por isso o deixem de fazer, se possam baralhar os resultados e desvirtuar os sentidos de voto.
Estamos assim nas mãos de cada vez menos eleitores a decidirem o destino da nação durante pelo menos quatro anos. E na incerteza de saber se entre os isolados por covid-19 estarão mais votantes que abstencionistas, gera-se o pânico e deste nascem exceções absurdas e perigosas para a sociedade e a credibilidade das instâncias que deveriam acautelar esses mesmos riscos. Houve tempo para ponderar outras soluções, entre voto digital e devidamente certificado, voto em assembleias destinadas a cidadãos nessa condição e com listagens ordenadas e preventoras de ajuntamentos e voto por correspondência para nacionais. Mas como quase sempre acontece neste país deixámos para o fim e agora é acreditar que possa correr o melhor possível. A velha santa Bárbara a entrar na equação. Isto porque a matemática eleitoral irá ser um campo minado pelas muitas incertezas que estes cenários, mal pensados e pior decididos, possam vir a emprestar a umas eleições já de si tensas entre uma esquerda que não aprovou o orçamento mas pondera voltar atrás para salvar a face e a governação, e uma direita que faz uma complexa aritmética onde o Chega não seja imprescindível para que a potencial governação chegue a bom porto.
Dia 30 irá ser assim uma lotaria com a chancela da comissão nacional de eleições e onde os resultados, consoante sirvam ou não os interesses de cada um, podem bem legitimar queixas, recursos e um caos político face à instabilidade, dúvidas e suspeitas que as exceções podem abrir na normalidade democrática e eleitoral. Antecipar cenários é complexo, mesmo com as sondagens a darem a vitória a Costa, e tudo se irá jogar na contagem das espingardas à esquerda e à direita. Uma coisa é certa e brota destas decisões mal gizadas, pior pensadas e decididas. Como bem dizia Claude Chabrol, a estupidez é infinitamente mais fascinante do que a inteligência. Esta tem os seus limites, a estupidez não. Boas eleições a todos.