Com este texto pretendo afirmar, em primeiro lugar, que a Igreja católica cumpriu, pela enormíssima humilhação a que se sujeitou, a missão que o Senhor Jesus lhe confiou de ser um sinal de mudança e um instrumento para a mudança. Desejo, afirmar, em segundo lugar, que, apesar da enormíssima humilhação, o terramoto mediático a que fomos expostos não precisa de retirar a ninguém um espaço, uma margem, que ainda possa existir, para o diálogo.
1. A primeira afirmação fundamenta-se num dos textos maiores do pontificado do papa Francisco, proferido no final da concelebração eucarística com os presidentes das conferências episcopais, no termo do encontro sobre “A proteção dos menores na Igreja”, no domingo, 24 de fevereiro de 2019.
O texto manifesta o arrojo do pensamento de Francisco, e sugere imagens que se gravam na memória do todo coletivo, asseveradas pela mão experiente de Mons. Charles Scicluna, antigo arcebispo de Malta.
Colho as três sugestivas imagens com que Francisco descreve o abuso sexual de uma criança e de um menor: sacrifício humano, mão do mal e monstruosidade. Ouvimo-lo nestas três declarações:
“Isto traz-me à mente a prática religiosa cruel, difusa no passado nalgumas culturas, de oferecer seres humanos – frequentemente crianças – como sacrifícios nos ritos pagãos.
Perante tanta crueldade, tanto sacrifício idólatra das crianças ao deus poder, dinheiro, orgulho, soberba, não são suficientes meras explicações empíricas;(…) vejo a mão do mal que não poupa sequer a inocência dos pequeninos.
Quero repetir aqui claramente: ainda que na Igreja se constatasse um único caso de abuso – o que em si já constitui uma monstruosidade –, tratar-se-á dele com a máxima seriedade”.
Com os dados da Oms, Unicef, Interpol, Europol, e os dados da Europa, da Ásia, das Américas, da África e da Oceania, Francisco deu aos bispos e ao mundo o quadro da gravidade, globalidade e transversalidade do flagelo, a que acrescentou a denúncia das redes de pornografia infantil e de turismo sexual, sem deixar de se referir às crianças-soldado, às crianças desnutridas, às crianças raptadas, às vítimas do comércio de órgãos humanos, às transformadas em escravos, às vítimas das guerras, às crianças refugiadas, às crianças abortadas.
“Chegou a hora – declarou – de colaborarmos, juntos, para erradicar tal brutalidade do corpo da nossa humanidade, adotando todas as medidas necessárias já em vigor a nível internacional e a nível ecclesial”.
Foi um discurso enorme, tido por mim como um dos maiores em dez de pontificado.
Em todas as entrevistas, que o papa está a conceder, – e já foram vinte num ano –, Francisco, muito mais sereno e cauteloso, que a reação furibunda ao relatório francês, agarra este tópico da ‘cultura abusadora’ e da “humanidade diabólica”, como o descreveu a Maria João Avilez, para o extirpar diante de todos.
É impressionante o serviço de Pedro à humanidade! O serviço de Pedro é o serviço de toda a Igreja, e não pode ser visto como um serviço isolado do Corpo eclesial, ou mesmo fora do Corpo eclesial. É impressionante o serviço de Pedro e da Igreja à humanidade!
Se, a partir do mal na Igreja, e por meio do mal na Igreja, o bem se tiver ativado nas pessoas, nas famílias, nos bairros, nas instituições e nos países, então a Igreja, na sua humilhação, cumpriu a sua missão de ser sinal e instrumento de salvação para o mundo. Se a Igreja alertou para a urgência da erradicação de qualquer abuso e de qualquer exploração, na sua crucificação, foi outro Jesus a despertar as pessoas do mundo inteiro.
Robert Barron, o bispo americano do Word on Fire, disse que a crise dos escândalos sexuais na Igreja católica foi a devil’s master piece, a obra mestra do divisor – chamemos-lhe mal, por ter atingido os mais novos, as famílias, a Igreja mãe e a Igreja serviço. Evidentemente, o mal derrubou a Igreja, desacreditou-a e esvaziou-a, mas ‘o mal nunca é vencedor, é sempre vencido’, como Francisco gosta de dizer. Pela humilhação, será vencido!
2. A segunda afirmação de que este terramoto mediático não precisa de retirar a ninguém o espaço de diálogo, fundamenta-se também no texto proferido aos presidentes das conferências episcopais, no domingo, 24 de fevereiro de 2019. Diz o papa:
“Chegou a hora de encontrar o justo equilíbrio de todos os valores em jogo e dar diretrizes uniformes para a Igreja, evitando os dois extremos: nem judicialismo, provocado pelo sentimento de culpa face aos erros passados e pela pressão do mundo mediático, nem autodefesa que não enfrenta as causas e as consequências destes graves delitos”.
Apesar do massacre mediático, ainda há espaço, ainda à margem, para a ponderação e para o diálogo, para a necessidade de voltar sempre à base do relatório Strecht, e à realidade das vítimas e dos abusadores. Sem judicialismo nem autodefesa.
Numa das entrevistas, à Infobae, em 10 de março de 2023, Francisco disse uma coisa que memorizei: “a boa resistência é a que faz amadurecer as coisas”; o papa suspeita das decisões que não tenham resistência, porque sem ela tudo fica “envaselinado”.
A sã resistência do papa à cultura abusadora, manifesta-se também na tensão entre o que é gravíssimo e a recusa de que isso seja sistémico; entre o que de facto aconteceu, sem que possa ser endémico; entre o que se relata e o que possa ser esclarecido.
A ponte entre as duas margens, o espaço que possa haver de diálogo, tem de ser construído através do conhecimento, do cuidado e da reparação das vítimas. Estou absolutamente de acordo, mas não perdi a esperança de, no contexto português, que é o que conhecemos e efetivamente podemos vir a conhecer cada vez melhor, manter-se aberto o espaço de ponderação sobre outras três pontes:
– o reconhecimento de que há abusadores que não posso colocar num mesmo saco; o reconhecimento de que há resultados que podem ser muito diferentes; o reconhecimento de que o profissionalismo e a notoriedade, empenhados para dar confiança, poderá ter sido corrompido com a passagem do tempo. Penso que ainda há espaço para dialogar sobre isto, ou então já não há e estou enganado. Se a torrente mediática avançar com saudável resistência, amadurecemos todos; se não a houver, a sã, a boa, então a torrente transforma-se em ideologia e, posteriormente, em mito.
A sã resistência de Francisco é a de Bento, é a de Ornelas, é a nossa, é a de todos, e é a mesma!