A manhã em Nova Iorque

Por Ricardo Magalhães

Passam poucos minutos das nove. O sol da manhã brilha radiante no céu limpo que flutua sobre a agitação que tradicionalmente povoa Nova Iorque àquela hora. Milhões de pessoas correm apressadas, umas mais outras menos, para o seu posto de trabalho, para a escola, para a consulta que haviam agendado para dali a pouco.

O mais interessante de viver rodeado de toda aquela multidão, e que consegue ser ao mesmo tempo positivamente e negativamente fantástico, é a indiferença que todos têm para com todos. Indiferença essa que nasce da ignorância, da incapacidade de ler as peripécias de uma história da qual apenas vemos a capa: a roupa, a expressão e o olhar daqueles com que nos cruzamos. No meio de todos eles haverá aqueles que estão alegres, aqueles que estão deprimidos, aqueles que estão doridos do treino de ontem no ginásio, aqueles que lamentam as horas de sono perdidas a ver só mais um episódio daquela série. E há também aqueles que que irão ter o primeiro dia no emprego de sonho das suas vidas, os que acabaram de ser despedidos, os que se vão casar, os que se vão divorciar, os que acabam de ser abençoados com um filho ou tiveram que dizer adeus a alguém que amam.

São milhões de vidas que se cruzam despercebidamente na cidade. Alheios a tudo isto, os passageiros do metro que seguia para a grande estação central da cidade sentem o seu meio de transporte parar mais cedo de que o suposto. Dezenas de olhares surpreendidos erguem-se do chão para encarar o que se passa à sua volta. O metro havia parado entre estações. A frustração com mais um dia de atraso do metro faz-se ouvir. O microfone do maquinista acende-se e as colunas espalhadas pelas carruagens permitem a todos ouvir: “Temos um comboio parado na rua 68. Vamos prosseguir dentro de pouco tempo. Podem estar aflitos, mas não fiquem. Deixem-me só contar-vos uma pequena história. Eu levo a minha filha para a escola todas as manhãs. Certo dia, eu e o meu amigo Levi ficámos a conversar distraídos e as crianças quase que chegaram atrasadas à aula. Chegámos tarde à estação e perdemos o comboio. Acontece que aquela manhã em particular era a manhã do 11 de Setembro. Se o Levi tivesse apanhado aquele comboio, ele teria ido para Manhattan porque ele trabalhava no World Trade Center. O que eu estou a tentar dizer é: não fiquem irritados por estarem atrasados. Nunca sabemos o porquê de estarmos aqui agora.”

É claro que destas palavras emana toda uma perceção e crença no destino que uns podem ter e outros não. É tremendamente humano querer tirar um sentido de tudo aquilo que nos acontece, especialmente quando não nos é assim tão bom ou agradável. Mais do que estar a querer dizer que existe uma força maior a conduzir os acontecimentos e que tudo aquilo que estamos a passar tem um sentido, quero apelar a que passemos menos tempo a lamentar aquilo que não podemos mudar. É tempo de contenção, de salvar vidas não saindo de casa. Então, abracemos este momento e vivamos em tranquilidade tudo aquilo que temos agora ao nosso alcance e antes lamentávamos não ter: a família, estar em casa, o tempo livre, a oportunidade de aprender uma coisa nova, etc. Em breve virá o tempo em que as nossas vidas voltarão a ser aquilo que eram. E pergunto: se estivermos sempre a lamentar o passado, frustrados com o presente e ansiosos com o futuro, qual é o momento em que vamos encontrar tempo para viver?

Desejo muita saúde para todos. Sigam as recomendações de segurança e com o empenho de todos iremos rapidamente estar de volta e com os menores efeitos colaterais possíveis. É tempo de cada um pensar em todos e de todos lutarmos por cada um.

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PS: a cena que relatei é um excerto adaptado do filme “O Sol também é uma estrela”.

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