Crónica de José Caria Luís
Pelo que nos é dado saber, no último “apanhado”de 23 de abril sobre o “ranking” da Covid-19 em terras do concelho do Cartaxo, constata-se que há fortes tendências para que o título em epígrafe atinja um grau efémero e, por tal motivo, deixe de fazer sentido. No entanto, julgo que o mais sensato será aguardar mais algum tempo até que os factos o contrariem em definitivo, o que não se nos afigura fácil.
Agora, voltando aos anos 40, 50, 60, e parte dos 70, de modo a concluir a saga do sofrimento e constrangimentos de que foi vítima a esmagadora maioria das mulheres durante aquele período. É evidente que, apesar das substanciais melhorias verificadas nos nossos dias, o flagelo ainda não terminou, conforme elas próprias sentem e afirmam. As décadas, os séculos que o antecederam ter-lhes-ão sido bastante mais penosos, mas isso faz parte dos anais da História, não da minha estória. Só relato aquilo que me foi dado ver.
Os tempos de apanhar pancada, por tudo e por nada, não tanto no dia a dia, mas mais na noite a noite, já se foram. Quando se diz na noite a noite, é porque, nesse período em que o álcool ingerido durante a parte da tarde passava à ação, a malhação era mais evidente. Tantas foram as vezes em que assisti a cenas degradáveis nas quais, em vez da, já de si abominável, bofetada, tudo valia: desde o esmurrar e pontapear, o quebrar o prato na cabeça da companheira, até à agressão à paulada, de tudo vi. E, para agravar mais a situação, a infeliz ainda era posta no olho da rua em plena noite, com a roupa que tinha no corpo, quer chovesse ou geasse. Os filhos, geralmente gente pequena, a tudo assistiam. Uns choravam, outros mantinham-se em silêncio. Os primeiros, para além de, também, levarem uns tabefes, muitas das vezes eram impelidos a sair de casa, acompanhando a mãe. Passadas algumas horas, altas horas da madrugada, lá vinha a desgraçada, tiritando de frio, desembaraçada do xaile com que abrigava os miúdos, para bater a uma porta que, apesar de, também, ser sua pertença, por ela fora escorraçada. Os motivos eram quase sempre fúteis, como a luz do candeeiro muito alta, porque gastava muito dinheiro, a sopa salgada, ou insossa, o rapaz mais novo tinha ranho no nariz, enfim, desde que o traste tinha saído da taberna, tudo valia para justificar a bestice.
No nosso concelho, pese embora muitas dessas mulheres trabalhassem na agricultura, em árduas tarefas, de sol a sol, pouco ou nenhum valor lhes era dado. A sua válida contribuição para as custas do agregado familiar não era reconhecida pelo parceiro. Quando, por motivos de intempérie, a faina agrícola era interrompida e o dinheiro não chegava para fazer face às despesas de alimentação, era a esposa que, de mão estendida, ia mendigar mais uma semana de fiado ao comerciante. Nunca conheci na terra um único homem que o fizesse. Como se tudo isso não bastasse, ainda havia uma agravante para aquelas que tinham raparigas: era a obrigação de amealhar uns tostões a fim de poder dar um enxoval condigno à filha, já que a mobília também era, tradicionalmente, obrigação dos pais da noiva. Dá para perguntar: – Quem terá sido o idiota que tal inventou?
* Artigo publicado na edição de maio do Jornal de Cá.