Em mais de 40 anos de democracia têm sido relativamente poucas as mulheres a integrar lugares de poder, nomeadamente na política. De vez em quando lá se ouve falar desta questão, normalmente em março, que a dia 8 assinala o Dia Internacional da Mulher. Sem querer encontrar grandes explicações para este fenómeno – sim é um fenómeno saírem mais mulheres das universidades, muitas com doutoramento, altamente qualificadas e isso não se traduzir na ocupação de cargos de poder –, convidámos quatro mulheres do Cartaxo a falar da sua experiência na política e do que pensam sobre a fraca expressão feminina em lugares ocupados, maioritariamente, por homens.
Através do percurso e da experiência de Ana Benavente, Maria José Campos, Odete Cosme e Sónia Serra, quatro mulheres integradas num mundo mais habitado por homens, tentamos perceber quais os ‘impedimentos’ para que mais mulheres assumam cargos mais elevados de poder e decisão. O caminho que cada uma percorreu é distinto, apesar de todas terem experiência a nível do poder autárquico, mas todas são movidas por convicções fortes. Estão unidas pelo feminismo, embora Odete Cosme não goste de rótulos e se considere “apenas mulher”. Mas até Sónia Serra, que já cresceu numa sociedade livre, se considera feminista, tal como Ana Benavente que, durante anos, pensou “ingenuamente, que a democracia traria a igualdade”. Maria José Campos não é exceção e adianta que é feminista, “na exata medida em que defendo a igualdade de oportunidades, quer na vida profissional quer na vida política”.
Mulheres na política
Para Odete Cosme, ex-autarca, pelo Bloco de Esquerda, na Assembleia Municipal, “foi relativamente fácil” entrar no mundo da política. Diz que “às vezes era olhada ainda um pouco de revés quando intervinha ou contestava, mas como sempre o fiz sem leviandades e devidamente fundamentada, a integração foi-se dando e eu fui aprendendo”. Por sua vez, Ana Benavente recorda que, apesar de entrar no mundo da política “sem hesitações e com grande entusiasmo”, foi mais cautelosa, nos primeiros tempos, no que contava aos pais, que temiam as consequências caso a filha se envolvesse em política. “Só depois do 25 de Abril e de quase dez anos de vida fora do País souberam (e apoiaram) a minha entrada no MÊS – Movimento da Esquerda Socialista – e o apoio a Otelo Saraiva de Carvalho. Vivia-se a liberdade e já se podia contar, então, que tinha sido do Partido Comunista, que tinha ido, clandestinamente, a Praga e a Varsóvia e que tinha conhecido Álvaro Cunhal em Paris. ‘Ai filha, as coisas que tu fazes!’”, conta a ex-Secretária de Estado .
Já no caso de Maria José Campos, que foi autarca durante 18 anos, na Câmara Municipal do Cartaxo, “por parte da família não houve uma reação de surpresa, pois já estavam habituados desde as lutas estudantis”, diz, contando que a sua entrada no mundo da política ativa aconteceu “logo a seguir ao 25 de Abril e nem deu para pensar. Inscrevi-me logo no Partido Socialista que ajudei a fundar no Cartaxo. Depois, foi todo um envolvimento ativo na construção da democracia”. E foi cerca de 40 anos depois do início da democracia que Sónia Serra entrou na política: “foi-me feito o convite, não estava à espera, nunca tinha pensado nisso, refleti um bocado e aceitei, porque senti-me impelida a fazer alguma coisa”, numa altura em que a Câmara Municipal do Cartaxo já se encontrava num momento difícil. “Tu és louca, não sabes onde te vais meter! Não sabes o estado em que a Câmara está?” Esta foi a reação de vários amigos quando souberam que ia concorrer nas listas do PS para a Câmara do Cartaxo, nas últimas eleições autárquicas. Mas o apoio da família foi fundamental para aceitar este desafio, que venceu, sendo atualmente vereadora, responsável pelo planeamento e administração urbanística, entre outros pelouros.
O apoio familiar é muitas vezes indicado como um dos entraves para a entrada da mulher em cargos de poder, havendo inclusive estudos que indicam que muitas das mulheres que ocupam estes lugares são jovens solteiras e mulheres divorciadas. Ainda assim também há mulheres casadas e com filhos que os ocupam, sem causar grandes constrangimentos no seio familiar. Sónia Serra, mãe de três filhos, reconhece que não é fácil, mas com a estrutura familiar que tem, tudo se consegue arranjar. “O meu propósito é prejudicar o mínimo a família. Não posso pôr em causa tudo aquilo que eu construí”, afirma. E considera que “a nossa vida tem que ser o mais completa possível. Se nos dedicarmos só profissionalmente acabamos por ficar coxos na parte pessoal, seja homem ou mulher”. Ana Benavente, ex- Secretária de Estado da educação, é da mesma opinião e acredita que “tudo se pode conciliar”. Também para Odete Cosme “a família está e esteve sempre em primeiro lugar. O tempo é regulado por nós e essa regulação baseia-se na capacidade de organização de cada indivíduo. Eu considero-me pragmática na organização das minhas tarefas e nas prioridades que estabeleço. Por isso, a família, sendo a prioridade número um, nunca sai prejudicada”. Maria José Campos “era jovem, tinha sido eleita vereadora, era professora e ainda não tinha tido o meu filho, por isso não prejudicou a minha vida familiar”.
Ao longo da sua vida interventiva não têm sacrificado muita coisa que as fizesse desistir. Há coisas que se adiam, como ter um filho, no caso de Maria José Campos, outras que se deixam de fazer, mas vale a pena, pois, como resume Ana Benavente, é “fundamental que todos nós, cada um à sua maneira, claro, nos impliquemos no coletivo e nas questões que a todos dizem respeito”.
Mundo de homens
Mas também há dificuldades. Afinal estas mulheres lidam num mundo maioritariamente e tradicionalmente masculino. “A tradição, os hábitos, os homens”, resume Ana Benavente, que afirma que “é preciso trabalhar muito, com persistência e sem ‘complexos’”, porque “continuamos a ser preteridas. Temos que ser muito melhores e mais competentes do que os homens para sermos reconhecidas (e aceites). Ainda hoje, uma mulher entra numa lista de deputados ou para cargos dirigentes se tiver o apoio dos homens”. E se também Odete Cosme refere “o ‘paternalismo’ dos pseudo profissionais da política”, como uma dificuldade”, considera que “é perfeitamente natural e fácil, integrar esses espaços! Os homens só ‘dominam’ até onde nós mulheres quisermos” (risos).
Os maiores constrangimentos são muitas vezes os horários, os homens tendencialmente marcam reuniões mais tardias, mas também essa situação pode ser contornada, acredita Sónia Serra, que tenta marcar as reuniões para horas mais aceitáveis, que não prejudiquem a rotina familiar. Ainda assim todas reconhecem que, nos nossos dias, a integração feminina num meio maioritariamente masculino é bem mais fácil, “ já que, progressivamente, a democracia foi fazendo o seu percurso abrindo as portas à igualdade”, afirma Maria José Campos, que recorda os tempos em que se iniciou na política, quando ainda se estava no início da integração das mulheres na vida política. “Fui a primeira e única mulher, aqui no concelho, a ser eleita vereadora e deputada. O anterior regime coartava os direitos da mulher, inclusivamente, para o exercício de certos cargos profissionais”, lembra.
A convicção destas mulheres fala mais alto do que as possíveis adversidades do meio, daí que tenham mais vontade de continuar a lutar pela causa pública do que desistir. Ana Benavente, que entrou na vida política “talvez sem avaliar bem os riscos”, reconhece: “gosto de ocupar o espaço público. Gosto de manifestações por objetivos que considero justos e ‘dar o corpo ao manifesto’, como se diz, faz parte de mim”. Tal como Maria José Campos, licenciada em economia, “com uma profunda convicção humanista” sentiu sempre uma grande vontade de “ajudar a construir um País mais livre, mais justo e mais desenvolvido”. Como diz Sónia Serra, “se estivermos sempre a olhar para o problema não conseguimos dar um passo em frente” e, nestes cargos, criam-se sempre “muitas expetativas do que queremos fazer, mas há muitas condicionantes e cada pequena vitória pensamos logo na seguinte”. Também para Odete Cosme, que se considera uma mulher destemida, “quanto maiores e mais difíceis se me apresentavam os desafios, mais eu me empolgava em os ultrapassar”.
Mulheres precisam-se
“Não pode haver boas soluções democráticas que não vivam da participação de mulheres e de homens, de modo paritário”, até porque “as mulheres constituem a maioria da população do planeta”, apesar de estarem “absolutamente sub-representadas nos espaços públicos”, lamenta Ana Benavente, que reconhece que “no espaço público, as mulheres trazem outros olhares, outras preocupações, outros modos de estar”. E Maria José Campos completa: “em muitos casos, a sensibilidade e a resiliência feminina, aliada a valores humanistas, ajudam a fazer a diferença”. Também Sónia Serra é da opinião de que “em termos de relacionamento humano, acho que somos muito diferentes dos homens; as mulheres tentam perceber melhor as motivações dos outros”.
Para além destas mais-valias atrás apontadas, Odete Cosme encontra mais benefícios na presença feminina na intervenção política. “Temos um feeling e uma capacidade de desempenho multifacetado, que os homens não conseguem atingir. Por isso, estamos em vantagem e só temos de empregar bem essa vantagem. A nossa capacidade natural de desempenharmos várias tarefas em simultâneo é uma mais-valia fenomenal. Mas há outras características, a capacidade organizativa, a luta constante contra as contrariedades e a parte mais emotiva, tolerante e sentimental, que lhes são endógenas, dão-lhes uma visão e estratégias diferentes dos colegas masculinos na resolução de problemas/conflitos”.
Com tudo isto, e na opinião das nossas entrevistadas, todos teríamos ganho caso as mulheres tivessem entrado, em maior número, há mais tempo em cargos decisores. “Ao marginalizar as mulheres do espaço público, perdemos a inteligência, a competência, a força, os sentimentos de metade do País”, sente Ana Benavente. Odete Cosme acha que teríamos ganho menos “crispação, mais sensatez e humanidade”, assim como “talvez tivéssemos superado mais rapidamente alguns problemas, resultantes de uma sociedade fechada e arreigada a valores muito conservadores”, conclui Maria José Campos.
Mas como refere Ana Benavente, “a paridade ainda não existe nem no Parlamento, nem no Governo, nem nos comentadores da TV ou dos jornais; os altos cargos empresariais e políticos ainda são uma espécie de ‘coutada’ masculina”. Daí que para Maria José Campos seja necessário conseguir “a própria consciencialização das mulheres de que a vida política não é um mundo restrito dos homens e que as mulheres têm o direito e a obrigação de exercerem conjuntamente a cidadania”.
É preciso “exigir a paridade em todos os órgãos de representação política”, reclama Ana Benavente, até porque “o voto feminino é maioritário em Portugal”, lembra Maria José Campos, que considera que deve haver “uma maior consciencialização, quer a nível educacional quer a nível social, de que uma sociedade livre e democrática só se constrói com a participação ativa de homens e mulheres”. Ambas tiveram oportunidade de implementar medidas com vista à promoção da igualdade das mulheres na sociedade, nomeadamente no âmbito da educação e de uma maior participação feminina na política, respetivamente.
Reconhecem que as quotas são um mal menor, são “indispensáveis até se atingir um estado civilizacional em que não se pratique a discriminação pelo sexo”, afirma Maria José Campos, pois, tal como refere Ana Benavente, “existe um estudo feito na Assembleia da República, há uns anos, que mostra que as mulheres, na sua maioria, são deputadas durante menos tempo (‘rodam mais’) e sempre menos numerosas, claro”. Para Sónia Serra, esta é uma maneira de trazer mais mulheres para a vida pública, “se não for assim não se começa”. Apesar de não ser a favor, Odete Cosme também reconhece que “as quotas são um mal necessário até ao dia em que já não o sejam”.
Reportagem publicada no Jornal de Cá, edição impressa, de março de 2016