Fomos até ao Museu Rural do Vinho ao encontro de Maria Manuel Simão, para esta entrevista, publicada em dezembro de 2007 na revista DADA.
Desde cedo interessada pelas artes e pela arqueologia, Maria Manuel Simão descobriu que era na escola que gostava de estar. Depois de um rico percurso profissional, sempre ligado à vertente da educação, é hoje uma professora aposentada, cheia de atividades, com muito ainda para fazer, mas sem tempo para tudo.
Quem é Maria Manuel Simão?
Eu sou uma pessoa de vários interesses e vários amores. Fui professora, sou pintora, mas sou uma pintora indisciplinada, que não pinta todos os dias. Mas também gosto muito de investigação. Desde pequena que dizia que era pintora ou arqueóloga. Em princípio teria tirado História, mas acabei por ir para as Artes, tirar pintura. Mas não deixei nunca a parte da História, nomeadamente da Arqueologia, e tive a oportunidade de fazer as duas coisas.
Uma vez, por coincidência, a visitar Conimbriga, fui interpelada pelo então director do Museu de Conimbriga, doutor Jorge de Alarcão, que andava ali por perto e me ouvia falar do que ia vendo com os meus pais. Perguntou-me se era de história, disse-lhe que era de artes, mas que me interessava por história e o professor acabou por me convidar para desenhar os trabalhos das escavações. Depois fiz umas escavações, sozinha, no Algarve.
Como é que veio parar ao Ribatejo? Não é natural daqui?
Sou algarvia de nascimento e ribatejana de adoção. Nasci em Faro, fiz lá o meu percurso liceal e saí de lá para as Belas Artes, para Lisboa. Mas não gostei da escola de Belas Artes de Lisboa – que era uma coisa horrorosa, atrasada ao máximo, enquanto que a altura a escola do Porto já era muito aberta. Acabei por ir para o Porto, porque lá aprendia alguma coisa.
Depois, dei aulas em Faro, no liceu onde fui aluna. Estive lá um ano. Eu sempre estive um pouco ligada à política, pelo meu pai especialmente, – e à política de esquerda, porque eu defino-me como uma mulher de esquerda, com valores de esquerda – e o reitor do liceu, que na altura era presidente da ANP (Acção Nacional Popular), fez-me uma maldade: injustificou-me uma falta, e achou que eu não era conveniente lá. E isso implicava um castigo de dois anos, sem leccionar. Mas, entretanto, consegui chegar ao Secretário de Estado e colocaram-me em Santarém.
Isto foi há 40 anos. Não conhecia Santarém, mas por cá fiquei.
Quando foi para as Belas Artes já pensava ir para o ensino?
Para se ser artista, especialmente neste País, não há grandes hipóteses. A maior parte dos artistas começa a dar aulas e depois há aqueles que conseguem dar o salto deixam as aulas.
Eu sabia que só como pintora era complicado começar. Tive hipótese de ir para o Instituto de Audiovisuais, que estava ligado na altura à RTP, mas já tinha dado um ano de aulas e o meu coração balançou na altura de decidir. Achei que gostaria mais de dar aulas. Portanto, o ensino acabou por ser uma opção.
Mas eu sempre gostei de novas experiências, não gosto de ficar sempre a fazer a mesma coisa. Portanto, o meu percurso no ensino foi interrompido, mas estive sempre ligada à escola. Eu costumo dizer que fiz praticamente tudo o que há para fazer numa escola e ligado ao ensino.
Dei aulas até 1976, altura em que fui nomeada para a direcção da Escola de Manique do Intendente e lá estive por seis anos, sem dar aulas. Vim para o Cartaxo, onde estive até 1985, ano em que abriu concurso para orientadores de estágio de professores e ao qual concorri, sendo escolhida, e estive na Escola Superior de Educação (ESE) de Santarém a dar formação a professores, até 1989. Regressei, entretanto, ao Cartaxo onde estive um ano, porque depois abriu em Santarém uma pós-graduação – um curso de estudos superiores especializados em comunicação educacional multimédia. Candidatei-me, fiquei e fiz o curso. Em 1992 convidaram-me para dar aulas na ESE em Santarém, aos cursos de animadores culturais, professores do primeiro ciclo e educadores, onde estive até 1995. Nesta altura saí e fui para a Coordenação da Área Educativa (CAE) da Lezíria e Médio Tejo, a convite de Ana Benavente, na altura Secretária de Estado da Educação. Três anos e meio depois, fui para assessora de Ana Benavente, mas o cansaço das viagens diárias trouxe-me de novo à escola. Na altura, faltavam-me quatro anos para me aposentar.
Agora aposentada há quatro anos, só faço o que me apetece (risos).
Acabou por percorrer todos os meandros do ensino.
Dentro da escola eu fui professora de educação visual, de desenho, diretora de turma, coordenadora de diretores de turma… Fui encarregada da instalação da Escola de Manique, em 1976 na altura do PREC, em que me foram dadas as instalações, sem mais nada – nem cadeiras, nem alunos, nem professores –, e eu tive de fazer tudo, à parte da contratação de professores que foi feita pelo ministério.
Do que é que gostou mais, no meio de tanta experiência?
De tudo. Gostei muito de estar no CAE, porque era um trabalho muito interessante, tinha a ver com todas as escolas e todos os ramos de ensino do distrito; gostava muito de receber os pais… mas gostei sempre de tudo o que fiz.
O que é essencial num professor?
Para mim, o essencial é, para além de uma boa formação base na parte científica, ter disponibilidade para ouvir os alunos e para estar na escola. O professor quando está na escola deve estar a tempo inteiro, deve ter disponibilidade para os alunos e ter a consciência de que se aprende muito com os alunos e que é uma troca de experiências.
Há diferentes metodologias, mas o essencial é que os alunos consigam captar todos os momentos da aula. Na minha opinião, a maioria das aulas são muito expositivas, e aprendi no curso que tirei que só 25 por cento daquilo que se diz fica retido. Portanto, há que variar as estratégias.
Na minha disciplina trabalhei sempre pelo método de resolução de problemas, nunca dei o conteúdo pelo conteúdo. Por exemplo, se na aula tinha de falar da cor não dava a cor pela cor; partíamos sempre de um tema, escolhido pelos alunos ou apresentado por mim, e dentro dessa unidade de trabalho (ambiente, edifícios escolares, etc.) eles tinha que investigar e depois desenhar. E, para mim, não me importava tanto o produto final – se estava muito bem desenhado, muito bem feito –, mas sim o processo que fez chegar a esse produto.
Eu, como dei essa disciplina, tive hipóteses de ter mais liberdade, mas penso que, de qualquer maneira, a maioria das disciplinas podem ser dadas de uma forma diferente.
Revê esse professor tipo no livro recentemente publicado “Mestre Cid e a Escola do seu Tempo – Cartaxo 1890-1929”, do qual é co-autora?
Mestre Cid era um homem para além do tempo, tinha ideias sobre o ensino que são muito actuais. Era muito preocupado com o bem-estar dos outros, dos pobres. Para mim, o mestre Cid foi um encontro muito interessante. Eu até costumo dizer que me apaixonei pelo mestre Cid.
E como é que se deu este encontro?
Eu faço, há muitos anos, coleção de coisas ligadas à escola, tenho uma paixão pelas coisas antigas e, lá está, uma paixão pela escola. Faço coleção de livros, materiais, etc., e cheguei a fazer, com os meus alunos da ESE, um projeto para um museu da escola, em Pontével. Entretanto, a bisneta do mestre Cid, que sabe destes meus projetos, ofereceu-me alguns livros antigos do bisavô, e eu pensei em fazer um estudo, indo o mais longe possível, sobre os professores que passaram pelo concelho do Cartaxo. Isto porque eu acho que se fazem muitos estudos sobre o ensino, mas não há estudos sobre os professores locais.
Para fazer o levantamento dos professores do concelho Cartaxo, fui à escola do Centro à procura de coisas antigas, documentação. Foi aí que me encontrei com o mestre Cid, que deixou imensas coisas escritas. E ele tinha a particularidade de escrever tudo. A partir, por exemplo, dos livros de correspondência dele, enquanto director da escola, fica-se a saber como funcionava o ensino naquela altura, quais eram as preocupações dele no Cartaxo e um pouco, também, como eram as coisas na vila.
Ele era um acérrimo lutador contra o analfabetismo, indo mesmo a casa dos pais que não colocavam os filhos na escola, e preocupava-se, em 1910, com as condições da escola, com o facto de as salas de aula serem pequenas, por não existir biblioteca, nem cantina. A nível da educação e como filantropo, mestre Cid foi uma pessoa muito interessada e preocupada que, no final, acabou por nos levar a fazer este livro só sobre ele, embora este seja também uma homenagem a todos os professores que, por todo o País e ao longo dos anos, se dedicaram de forma tão empenhada à Escola.
Conhece muitos professores, atualmente, tão empenhados e interventivos?
Hoje também há professores, assim, muito empenhados, mas na sociedade em que vivemos hoje as coisas estão mais dispersas.
Hoje a minha experiência é que os professores mais novos chegam e, na maioria, não pedem ajuda; sabem tudo. Quando eu fui dar aulas, com 23 anos, os outros professores, mais velhos, ensinavam-me e eu contava com eles. Mas coisas mudaram muito. Hoje em dia, o conceito de solidariedade, de ajuda, quase que não existe. Considero a minha geração muito solidária, na sua maioria, tem valores solidários.
Qual é, afinal, a missão do professor?
O professor para além de ensinar é, essencialmente, um educador. Mas a educação não está – como a maioria das pessoas considera – a cargo da escola e dos professores. A educação tem de começar em casa, porque é até aos três anos de idade que se educa e que se forma o carácter da criança. Depois dessa idade é que aprendem coisas.
Para mim, o professor, para além de um ensinador de matérias, tem de ser um educador. Na minha disciplina, trabalhávamos sempre em grupo para incutir esse espírito de solidariedade, em que todos contribuem para o mesmo e isso faz parte da educação. Eu eduquei os meus filhos nos valores da solidariedade que me ensinaram e que prezo.
Mas a escola tem que ir ao encontro das culturas, porque normalmente o que se faz é dar a todas as camadas a cultura dessa escola, de quem faz essa escola. A escola muitas vezes não se adapta à realidade da comunidade. E não pode ser.
Como encara o atual panorama do ensino nacional?
Já saí há quatro anos, mas acho que está caótico. A sra. ministra, Maria de Lurdes Rodrigues, está a fazer um braço de ferro com os professores. Já João de Barros, um pedagogo que chegou a ser ministro, dizia: “as reformas fazem-se e a culpa é sempre dos professores, mas nunca ninguém ensina os professores a trabalhar com a nova reforma.” E isto é verdade. Não se podem fazer as coisas contra os professores!
Se me perguntarem se sou a favor da avaliação, sou, sempre fui. Acho que é importante. Acho que as pessoas não se podem nivelar pelo ‘bom’, porque há professores muito dedicados, que trabalharam n horas a mais na escola, e há aqueles que chegam, dão as aulas e vão-se embora, sem se envolverem nas coisas da escola e com o menor número de cargos possível.
Qual é a sua opinião sobre o modelo de avaliação implementado pelo Governo?
O que eu conheço mais é a angústia dos professores que estão na escola, a dizer que são muitos papéis, muita burocracia.
Algumas declarações que ouço de professores na televisão, são muito infelizes. Esses eu não posso apoiar e só posso dizer: há tanta professores que sempre ficaram mais umas horas na escola. Eu sempre advoguei que o trabalho que o professor tem de fazer – preparar lições, etc. – devia ser feito na escola, em grupo. Em vez de ir para casa trabalhar, o professor fica na escola, onde deve dedicar-se também a outras coisas. Há imensas actividades que se podem fazer com os alunos, para os cativar, para que eles sintam que a escola é deles.
Penso que haverá uma parte que está contra qualquer avaliação e outra contra este processo tão burocrático e, por um lado injusto, porque vai criar tensões nas escolas. Isto, porque há muita competitividade e há quem não queira dedicar mais tempo à escola, mas depois não gosta que haja quem faça. É uma chatice porque há alguém que faz e eles não fazem.
Depois há a questão de, por exemplo, um professor de desenho ir avaliar um professor de matemática.
Mas vão avaliar como é o professor a dar a aula, não vão avaliar a matéria, o conteúdo. Se tiver de avaliar um professor de matemática ou contabilidade posso não saber avaliar o rigor dos conteúdos dados, mas sei ver como é que ele age na sua aula – se tem a preocupação de preparar material diverso, de utilizar estratégias diversas, com uma parte expositiva e outra parte com os alunos a trabalhar. Isso são as regras gerais nas diversas disciplinas, depois há algumas coisas mais específicas.
Portugal, nas últimas décadas, tem tido nota negativa na área da educação. O que é que, para si, tem falhado?
A educação nunca foi valorizada em Portugal. Se bem que, teoricamente, as coisas são muito bonitas. A primeira República tomou nas mãos a instrução, para a libertação do povo, etc., mas depois houve ministros a durar um dia, nomeados num dia e exonerados no dia seguinte. É uma lista enorme de ministros.
A maioria das pessoas não sabe que a escolaridade obrigatória existe neste país desde 1835. E, no entanto, em 2001 ainda havia em Portugal nove por cento de analfabetos. Já no século XIX, enquanto que em Portugal havia 96 por cento de analfabetos, na Suécia havia três por cento.
Em Portugal, nunca se investiu na formação das pessoas, na escolaridade obrigatória, na gratuitidade, em acabar com o analfabetismo. Depois temos pais que também não valorizam a escola. Costumo dizer que antes dos filhos, os pais devem ir à escola. Porque a maioria dos problemas que se passam na escola é porque os pais, primeiro, se demitem e, depois, exigem do professor.
É uma diferença abismal entre os nossos alunos e os alunos de Leste que temos nas nossas escolas. Não tem nada a ver. Os pais valorizam a escola, para eles a escola é muito importante, e os meninos gostam muito de trabalhar, são educados, tiram boas notas. É uma diferença!
Como foram os seus tempos de estudante?
Tenho muito boas recordações do meu tempo de estudante, mas foram tempos de opressão total, não tínhamos liberdade nenhuma, não podíamos falar com rapazes, nem estar a cem metros… Uma vez ia com um grupo de colegas para o liceu e passou o reitor, que ficou à nossa espera à porta e, imediatamente, mandou as meninas para o gabinete das contínuas e os meninos para o gabinete dos contínuos, onde ficámos fechados desde as 8h30 da manhã até às 13h30, com um dia de suspensão. Só por irmos juntos, rapazes e raparigas.
Mas depois, dentro daquelas restrições, havia aqueles esquemas e até maldades que fazíamos aos professores.
Como vê, na generalidade, os jovens estudantes dos dias de hoje?
Eu não sou daquelas pessoas que dizem que esta geração está perdida. São outros valores. Infelizmente, se calhar, perderam-se alguns valores que eu considero mais importantes.
Há sempre um choque de gerações. E acho que esta não é uma geração rasca.
Aprendeu muito com os seus alunos, enquanto professora?
Acho que sim, que aprendi. Eu costumo dizer que aprendo com toda a gente.
Agora já não leciona, mas desenvolve outras atividades.
Neste momento, depois de acabar o livro, tenho estado a participar na conceção do museu da escola, ou melhor, de um novo pólo do Museu Rural e do Vinho, que se pretende que seja um ecomuseu, com vários pólos ligados ao vinho e à vinha, mas também ligado à vida rural. E a escola, no fundo, faz parte do mundo rural, daí que eu esteja a trabalhar, com o dr. Nabais, a Sofia Antunes e a Carla Neves, nessa área do museu.
Depois, desenvolvo aqui no Museu Rural e do Vinho, com a Sofia, um projecto do serviço educativo do museu que tem duas vertentes: artes plásticas e música. Vamos agora fazer os ateliês em simultâneo, em que as pessoas pintam enquanto ouvem música.
Pretende-se dinamizar o museu com esta e outras actividades e, como presidente do conselho consultivo, aqui estou ligada a essa área.
E é uma artista, com obra exposta. Que relação tem com a pintura?
Eu exponho desde 1964, há 44 anos. Comecei a expor em Faro, depois houve um período em que tinha dois filhos pequenos não fiz muitas exposições. A partir de 1988, tenho feito exposições quase todos os anos, de dois em dois anos. Agora parei um bocado. Eu gosto, de vez em quando, de fazer umas paragens.
É uma apaixonada pela arte?
A arte é uma paixão, mas estas investigações ligadas à escola têm sido uma paixão também.
Mãe de três filhos, com um percurso profissional exigente, foi fácil gerir essa vida?
Eu considero que tudo o que fiz ajudou a educar melhor os meus filhos. E quando ouço dizer que há pouco tempo para estar com os filhos eu digo sempre: não é o tempo que conta, mas a qualidade do tempo que se está.
Eu penso que o tempo que estive com os meus filhos foi bem aproveitado e o que eles viam em mim era uma pessoa dinâmica, com interesses, que não pára, e isso, também, ajudou-os muito a crescer, com determinados valores e determinada maneira de estar na sociedade.
Eu sempre tentei ensiná-los a serem independentes, para não dependerem de mim. Até mesmo a estudar só ajudava se eles me pedissem, porque ensinei-os a trabalharem sozinhos.
Considero que – e penso que eles também acham o mesmo – ter feito sempre aquilo que também me realizava, não foi prejudicial para eles, que são hoje pessoas bem formadas e bons profissionais.
Sente-se uma mulher realizada?
Sim. Mas ainda tenho muita coisa para fazer.
Eu não me sinto velha, acho que a idade está na cabeça das pessoas. Sou avó, mas não a tempo inteiro. Sinto que ainda tenho muita coisa para fazer. Tenho imensos livros para ler, muita música para ouvir. E, costumo dizer, falta-me tempo para fazer tudo o que gostaria de fazer.
Entrevista publicada na edição impressa nº11 da revista DADA, em dezembro de 2007