Opinião de Ricardo Magalhães
Nas últimas semanas, o racismo voltou a estar nas bocas do mundo. O assassínio cruel e injustificado de George Floyd voltou a levantar a revolta da população norte americana contra a violência policial recorrente naquele país e, em particular, para o racismo sistémico que continua a perdurar, quase 60 anos após o discurso com que Martin Luther King emocionou, não só a América, mas todo o mundo, com a sua visão de irmandade entre os humanos, alheia à tonalidade da cor de pele de cada um.
Podemos passar horas, dias, semanas a discutir o assunto e os acontecimentos que vemos diariamente serem relatados na TV. Existirão sempre vozes a levantar-se a favor, a apresentar-se contra ou a implicar com pormenores que pouco ou nada têm a ver com o essencial dos valores em discussão. Como em tudo na vida, podemos complexificar o debate sobre o racismo ao máximo, tornando-o por vezes quase num assunto académico, abstrato e sem aplicação prática. No entanto, 90% do conteúdo e daquilo que realmente interessa e fará diferença no mundo creio que poderá ser escrito nas próximas, poucas, linhas.
Imobilizar pessoas colocando o joelho no pescoço de alguém, impedindo a chegada de oxigénio ao cérebro, tal como já admitiu o governador da Califórnia, é uma manobra policial bárbara e sem lugar naquela que é a sociedade que queremos construir para o século XXI. George Floyd foi assassinado (as imagens em vídeo comprovam a brutalidade da ação policial), pelo que toda a condenação de gravidade inferior a um homicídio por negligência será chocante e injustificável. A ser provado em tribunal que motivações racistas existiram (o que será, porventura e infelizmente, difícil de fazer), ter-se-á então tratado (como os milhões de manifestantes defendem e eu acredito) de um homicídio propositado, com a agravante atroz de ter sido cometido por alguém que tinha por compromisso proteger-nos a TODOS nós.
O racismo ainda existe por todo o mundo. E existe de forma estrutural. Mesmo que à maioria de nós nos passe ao lado, basta escutarmos as histórias daqueles que dele são alvo para o entendermos. Por essa razão, aqui me solidarizo com aqueles que por todo o mundo fazem ouvir a sua voz por uma causa que não é de pretos, brancos, amarelos ou encarnados, mas de toda a humanidade. Por isso, vemos tanta gente não ostracizada juntar-se àqueles que o são, numa prova maior do que é a humanidade e do nosso papel na sociedade.
Da mesma forma, condeno aqueles que aproveitam a confusão gerada pelos protestos para realizarem atos de vandalismo, violência e roubo. Lembro que estas pessoas que vamos vendo praticar estes crimes na internet constituem uma minoria não representativa do movimento anti-racista que corre o mundo por estes dias. E que por isso não a devemos utilizar para julgar aqueles que saem à rua para defender o bem. Na verdade, estas pessoas, mesmo que se digam anti-racistas, são na verdade criminosos que se aproveitam da situação para desculpar atos que não têm defesa possível. Um verdadeiro anti-racista não se atreveria a manchar o movimento com tais ofensas.
E, finalmente, convém lembrar a situação de calamidade de saúde pública que vivemos no mundo. O Covid não desapareceu, nem mesmo tirou férias para nos dar oportunidade de lutar sem cuidados pelo que está certo. O vírus está nas ruas e ao contrário daqueles contra quem protestamos não distingue raças e ataca-nos a todos. Assim como há dois meses atrás, é preciso estarmos unidos: um irmão (no sentido que Luther King lhe deu) protege o outro. Vai ficar tudo bem, mas até lá não podemos relaxar e destruir os resultados dos esforços que andámos a fazer nos últimos 3 meses. É preciso lembrar que propagar o vírus é estar a matar pessoas e não é menos assassino e reprovável que o ato cobarde de que foi alvo George Floyd, porque nasce da mesma indiferença pela vida humana. (Ok, talvez não o seja exatamente porque não estamos a olhar as pessoas nos olhos enquanto morrem à nossa frente, mas somos nós que as estamos a matar.) Por isso, e sendo totalmente a favor das manifestações e dos valores que defendem por todo o mundo, não posso deixar de fazer uma crítica severa à forma como estão a decorrer. Compreendo a revolta das pessoas, mas é preciso ter noção. Compreendo que não queiram adiar mais o combate contra o racismo que, em bom português, era necessário para ontem, mas é possível e crucial fazê-lo cumprindo as recomendações das autoridades, a começar pelo cumprimento da distância de segurança. Em vez de juntarem milhares de pessoas num cordão de 1 km de comprimento, se calhar juntem num de 2 ou de 3. Mas vamos combater o racismo sem dar hipótese a que o vírus volte a ganhar força.
Para terminar, ninguém nasce racista. O racismo é um problema cultural. São os nossos familiares, professores e conhecidos que nos ensinam a distinguir pessoas pela cor que trazem na pele. Poderiam fazê-lo pela cor de cabelo, dos olhos ou de outra coisa qualquer, mas quis a História que assim não fosse. Por isso, na minha opinião o racismo combate-se com educação. Quando ensinarmos os nossos filhos a olharem para alguém e verem uma pessoa, não uma raça, o racismo acaba. E não é uma questão secundária. Trata-se de garantir que todos veem respeitados os seus direitos humanos fundamentais. Percorremos um longo caminho desde que Luther King nos apontou o caminho. Muitos morreram e foram violentados às mãos de quem faz do ódio e repulsa os seus guias de ação. No entanto, ainda há mais a atingir nesta luta pela igualdade de quem partilha connosco a humanidade. Manifestações como as que temos assistido ajudam a relembrar a importância desses valores e a sua relevância na sociedade em que vivemos. Façamos essa luta, com a responsabilidade exigida nos tempos em que vivemos. Li recentemente que temos a responsabilidade moral de ser eticamente mais conscientes que as gerações que nos antecederam. Fico feliz por ver que é por isso que estamos a lutar. É o sonho que nos conduz e ultimamente nos fará chegar ao destino que ambicionamos.
RIP George Floyd (1974-2020) e, com ele, todos aqueles a quem vida foi retirada pela crueldade e ignorância de outra pessoa.