Se lá é mirandês, cá seria cartaxês (I)

Crónica de José Caria Luís

E porque não? Atendendo a que os mirandeses reivindicam uma língua de sua pertença, com dicionários e tudo, pautada como a segunda língua em Portugal, não assistirão ao Cartaxo (a todo o concelho) razões bastantes para chamar a si o reconhecimento e a elaboração documental de, ao menos, um dialeto que perdurou através dos séculos e que, agora, com o aparecimento das novas tecnologias, tende a perder-se para sempre?

É evidente que um tema tão sensível que, tenho a certeza, iria gerar muita controvérsia, não deveria ser trazido à liça por um amador como eu, mas por alguém superiormente ligado às áreas da linguística, filosofia e história. Era uma maneira de lhe ser conferido outro crédito. Eu apenas deixo o mote.

Mas por que raio me fui lembrar de tal utopia, devaneio, mesmo? É que já lá vão uns 20 meses que, por força das atuais circunstâncias sanitárias, não escuto a sonoridade das gentes da minha terra, e isso dá-me cá uma angústia que vocês nem conseguem imaginar. Pelo facto de, durante décadas, ter percorrido Ceca e Meca por força da profissão, ter ouvido falares e pronúncias de gentes de muitas latitudes, e ter acabado por me radicar na zona do Porto, onde em cada dez palavras, cinco são mesmo palavrões, confere-me alguma estaleca para vir expor este meu ponto de vista. Mas dizia eu que a língua, o dialeto regional a que aludo, anda sempre presente na minha mente, quer nos momentos de ócio, como até em sonhos, vejam bem.

Em cada rua, em conversas entre vizinhas, no barbeiro, na taberna, na praça do peixe, nas oficinas ou nas obras, o que se ouvia era sintomático de que ali se privilegiava o vocabulário local. Então, de modo sucinto, a ilustrar certas frases, a propósito, dizia-se:
– O desastre foi na ponte que morreu o home! – sem se saber muito bem quem teria sido a vítima.

Em certa ocasião, vinha a Emília da Antónia descendo a rua dos Casais, a caminho da praça do peixe, quando se cruzou com a Maria do Silvestre, e perguntou:
– Ah, SeMaria, o que é que tem por lá a Estrude Cuca? – Olha, mulher, tem arraia!
– Tanto se me dá que tenha arraia, como tenha abrase! Mas, mesmo assim, ainda vou lá alservar.

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Uma outra, só para fazer pirraça à vizinha, gabou-se:
– Já não preciso de favores, o mê Manel já comprou um previzador!

A mesma gabarola informava:
– Querem cepa da boa? Façam como eu, vão ao Balfalcão! Anda lá um catrapil ou uma bundosa, ou o que é aquilo, a arrotear as terras, e tem para lá cepa que é uma farturinha.

No tempo do velho Sequeira, aquele da carroça ambulante, que vendia rua a rua – quase porta a porta – petróleo, sabão, carvão, azeite, lixívia e rodelas de carqueja, depois de uma atribulada manobra com uma roda da carroça, acabou por deixar penduradas muitas freguesas que, impacientes, o esperavam à porta. Uma minha vizinha, testemunha ocular do acidente, que marchou rua da Carmona acima, no sentido de as sossegar, informou:
– Eh, prigas, o pitrolino deixou cair a carroça no alcaduto do Zé da Azóia, mas não se partiu nada! Só se espalharam as rodelas de carqueja. Vieram de lá uns homes, da Quinta do Vegas e já estão a endireitar aquilo.

Mas era assim: ao contrário das estórias da Carochinha, todos éramos uns infelizes, ou quase todos…

* Artigo publicado na edição de setembro do Jornal de Cá.

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