Crónica de José Caria Luís
Na senda dos dois capítulos anteriores, lamento ter de concluir que alguma populaça tuga seja teimosa que nem asno velho. Então, como é possível que, num processo de confinamento que até se estava a revelar eficaz, se assista ao regredir ao ponto de se passar de bestiais a bestas, tal como disse um dia um destacado dirigente do nosso futebol?
Segundo alguma Imprensa, Portugal estaria a ser um modelo de cidadania, dando uma grande lição civilizacional ao mundo. E agora? Aqueles que, em março, açambarcaram papel higiénico às toneladas, ainda têm com que limpar o dito cujo, mas os outros, os mais sensatos, nem isso. Bom, mas como a cada passo se vê na imprensa escrita e falada, já para não falar dos mui sabedores facebookianos e instagrameiros, o que é preciso é ter fé. Não passa nada, tudo vai ser como dantes… Isto, se à frase retirarmos todos os que se finaram e os danos colaterais associados, as empresas que encerraram portas, o caótico desemprego e a situação crítica em que se encontram milhares – não sei se milhões – de famílias, então fé nisso. Se atendermos ao sentido da epígrafe, e evocando o tema Covidis, sabemos mais hoje que ontem. Pelos vistos, se o Seguro já não morreu de velho, se a Esperança é a última a morrer, e se a fria e calculista dona Prudência terá ido aos enterros de ambos… então, haja prudência! E está tudo dito.
Longe estava a rapaziada de 40 e 50 de pensar que alguns dos seus membros ainda iriam passar por uma coisa daquelas. Na altura, o sofrimento era de outro tipo, ainda que, no que concernia à carência alimentar, haja alguma similitude. Mas o pessoal de antanho não era herói e também se assustava. Quando, pelo mês de maio, no interior das suas precárias habitações, viam o clarão do relâmpago e, 343m/s depois (sabíamos da Escola) ouviam o ribombar do trovão, era sabido que se instalava a confusão no lar. Com as tarefas já, mais ou menos, distribuídas – mercê de sustos em anos anteriores – cada qual tentava minorar os efeitos do acerto de contas com o Criador. Por maior que fosse a carga de água, a bátega batida a vento que assobiava por entre as frestas das telhas de canudo, nunca as rezas, os gritos e as lamúrias eram dirigidas a São Pedro. Os apelos eram, em primeira instância, dirigidos a Santa Bárbara e a São Jerónimo. Alguém nado, criado e instruído em remotas civilizações terá espalhado que estas eram as duas personagens padroeiras para as trovoadas, daí que as rezas lhes eram sempre dirigidas. No entanto, tendo em conta todo o tipo de carências da época, nunca os vi nas imagens que havia por casa. Os fabricantes, já a pensar no volume de negócio e chorudos lucros, eram uns autênticos vendilhões do Templo. Queriam lá eles saber se o povo orava a A, B ou C… Enquanto a mãe, depois de acender a candeia de azeite, procurava um lençol para cobrir os espelhos da casa e o terço para rezar, os miúdos acercavam-se da capoeira e enquanto um pegava numa galinha, o outro atava-lhe a uma pata, por meio de guita de sisal, uma enxada velha que por ali estivesse desprezada. A prioridade ia para a galinha choca, já que, se o não fizessem, os pintos podiam sair malucos, diziam as velhas.
*Artigo publicado na edição de julho do Jornal de Cá.