Memórias para a história de Azambuja e Cartaxo

Por Rogério Coito

Notícias de processos no tribunal da ex-comarca

Corria o ano de 1791 quando um alvará com força de lei assinado pela rainha D. Maria I, ordena que o Senhorio do prazo de Alcoentrinho tome posse da terra para ele e todos os seus descendentes e que a povoação passe a denominar-se Manique do Intendente. Até finais do século XVIII chamara-se Arrifana ou S. Pedro de Arrifana mas depois que foi instituído um morgadio a favor de Diogo Inácio de Pina Manique, Intendente-Geral do reino, tudo se altera. Figura controversa, defensor do poder absoluto que criou na polícia um grupo de agentes especiais, conhecido por “as moscas”, torna-se o 1º Senhor de Manique até que a morte o veio buscar por volta de 1805 e com ele partiu também o sonho de uma cidade à medida das suas ambições. Ficaram as marcas nas ruínas de um palácio inacabado, uma casa do Senado, o largo do Pelourinho donde irradiam várias avenidas com nomes de imperadores romanos.

Pina Manique

Dizem alguns escritos que a sua personalidade não ia bem com os ociosos e a ladroagem e até a lustrosa nobreza ele olhava de lado quando o pretendiam minimizar, fazendo-a descer muitas vezes do patamar de elite social bem-nascida onde se pendurava para fazer a diferença de classes. Um exemplo desses trata uma carta que enviou ao duque de Cadaval, quando este se lhe dirigiu tratando-o por tu: “Exmº. Sr. Duque de Cadaval: Se o meu nascimento, embora humilde, mas tão digno e honrado como o da mais alta nobreza, me coloca em circunstâncias de V. Exª me tratar por TU – caguei para mim que nada valho.

Se o alto cargo que exerço, de Corregedor da Justiça do Reino em Santarém, permite a V.Exª, Corregedor Mor da Justiça do Reino, tratar-me por TU – caguei para o cargo.

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Mas, se nem uma nem outra coisa consentem semelhante linguagem, peço a V. Exª que me informe com brevidade sobre estas particularidades, pois quero saber ao certo se devo ou não cagar para V. Exª.

Santarém, 22 de Outubro de 1795. O Corregedor de Santarém. Pina Manique”.

Depois as alterações políticas sucederam-se e as ideias liberais impuseram-se. Mas as relações entre a população e os descendentes do Intendente-Geral nem sempre foram as melhores e disso nos dá conta O Ribatejo que se publicava no Cartaxo em 1897. Um julgamento importante que se realizou no tribunal da ex-comarca e que envolveu um neto de Pina Manique, também ele Diogo Inácio e a quase totalidade da população de Manique que durante dias invadiu em peso o Cartaxo. Em causa uma reivindicação de baldios. D. Diogo comprou à Companhia de Crédito Predial diversas propriedades situadas em Manique, que foram pertença dos seus antepassados e que teriam ido parar àquela Companhia de Crédito devido a execução judicial. Tentava aos poucos reconstituir todos os terrenos da antiga casa Manique, mas o povo da localidade passou a partir daí a viver em permanente revolta contra D. Diogo, não conseguindo este tomar posse das propriedades porque as consideravam baldios e do domínio público. A esta antiga questão, acrescia o facto de os terrenos andarem quase sempre incultos e as pessoas do lugar para adquirirem o seu sustento eram obrigadas a ir ganhar a jorna fora da localidade.

Em Maio e Junho de 1896 o povo foi em massa ao Pinhal de Cima e abateu-o completamente fazendo faxina da madeira que vendeu ou utilizou em proveito próprio. Dizia-se que o D. Diogo ia tomar posse do pinhal e o povo quis fazer valer os seus direitos. Em consequência disso foram pronunciados e levados ao tribunal do Cartaxo 13 homens e 2 mulheres do conjunto de quase todo o povo de Manique. O juiz era o Dr Barata Reis, como delegado do Ministério Público, o Dr Rocha Aguião, na defesa um causídico de grande nomeada, o Dr Armelim Júnior e um júri. Houve de tudo. Réplicas e tréplicas, incidentes e amuos, grandes peças de oratória e o advogado de defesa, citando leis e tratados provou que “ a prova de direito de propriedade não se podia fazer com testemunhas que comiam à mesa com o queixoso, mas com documentos” (que não foram apresentados).

No relatório final, o juiz expôs aos jurados a questão sobre a qual se teriam de pronunciar. E veio a decisão do júri: Crimes não provados. Mas o juiz não gostou e deu o júri por iníquo, ordenando que os réus se sujeitassem a novo julgamento.

O Ribatejo de 1897 não acrescenta muito mais. Mas hoje sabemos que o povo de Manique ganhou a demanda e ocupou os terrenos do Parou dividindo-os em 407 parcelas iguais de 2 ha, numa área de 814 ha. A ocupação não foi pacífica. Chegou mesmo a haver confrontos com a tropa de Infantaria 9 das Caldas da Rainha chamada a moderar o conflito. Foram muitas noites de vigia, algumas prisões, mas venceram.


Rogério Coito é historiador e escreve segundo a antiga ortografia, este texto foi publicado na Revista DADA nº54, edição impressa de fevereiro de 2015


Foto em destaque: Um palácio que agrega uma igreja de estilo neoclássico e que segundo alguns autores foi desenhado por José da Costa e Silva, o mesmo autor do Teatro S. Carlos, em Lisboa.

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