Quem se lembra do professor José António Poeira?

Este mês de fevereiro cumprem-se 50 anos do falecimento do professor José António Poeira. Bagos da Memória, por Pedro Gaurim

Pedro Gaurim

O professor José António Poeira (1903-1974) faz parte da plêiade de professores primários que nasceram entre os finais do século XIX e os inícios do século XX, e ficaram imortalizados na toponímia do Concelho do Cartaxo: Maximiano Fernandes Cid, Stael Machado, Bernardo das Neves, Adelaide Aguiar (Lapa), Artur Simões da Silva (Pontével), Lucinda Elisa da Conceição Fonseca Araújo (Vale da Pinta) entre outros… Viveram numa época em que a consciência da importância do ensino primário era grande e as homenagens se multiplicaram. João de Deus faz parte da toponímia da cidade do Cartaxo, vulto nacional do ensino que não teve nenhuma relação com a localidade e não por acaso deu nome à avenida junto da antiga grande escola primária, que para se distinguir de outras futuras, viria a designar-se “do centro”.

A 10 de Fevereiro de 2024 cumprem-se 50 anos que o Prof. Poeira, como era conhecido, faleceu em casa de família na freguesia de Alvalade (Lisboa), sendo sepultado no Cartaxo como foi seu desejo, possivelmente, por aí se encontrar a sua esposa, falecida a 13 de Março de 1971. O seu nome foi atribuído, em data que desconhecemos, à rua aberta na década de 1960, em perpendicular à fachada da Escola do Centro, onde deu aulas na Sala 1, e hoje funciona a Universidade Sénior do Cartaxo. Esta rua começou por chamar rua Projectada à Rua do Jardim começou a ser urbanizada por volta de 1963 pelo Sr. Manuel Pato, grande construtor do Cartaxo, natural de Pernes.

A história que aqui vamos contar é uma relação de factos baseada sobretudo em documentação de arquivo, pois não deve haver hoje vivo, quem o tivesse conhecido bem na primeira pessoa. Hoje, possivelmente, apenas os seus alunos se lembram dele, caso do meu pai, António Gaurim Fernandes, que fez parte da turma da Escola do Centro de 1962 a 1966 e se recorda de uma personalidade bastante austera e de grande exigência com os alunos.

O Prof. Poeira nasceu na Rua Sá de Miranda (nº 2, R/C), no bairro de Santo Amaro, na freguesia de Alcântara, em Lisboa, precisamente no local onde a partir de 1927 se viria a fixar a famosa fábrica de chocolates Regina, e hoje está um prédio residencial recente.

Os seus pais eram José Fernandes Poeira, “marítimo” e Ana do Carmo Poeira, “doméstica”, ambos naturais e casados em Olhão. O Prof. Poeira foi baptizado a 28 de Fevereiro de 1903 na Igreja de São Pedro de Alcântara, pelo prior José Alexandre de Campos e teve como padrinhos aristocratas ilustres: D. António Borges Coutinho de Medeiros Sousa Dias da Câmara (1871-1941), e madrinha “Nossa Senhora da Conceição, tocando com a prenda o excelentíssimo Marquez da Praia e Monforte, Dom Duarte” Borges Coutinho de Sousa Dias da Câmara (1861-1907). A morte precoce deste, faria passar o título ao irmão D. António, acima referido.

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O Prof. Poeira casou civilmente a 1 de Janeiro de 1933 com Cândida Alves da Silva natural da freguesia da Ajuda onde era moradora na Rua do Galvão (Nº25, 1ºDto.) na freguesia de Belém. É uma antiga rua quase ao lado da Igreja da Memória, onde está sepultado o Marquês de Pombal, quase toda substituída na década de 1960 por inestéticos edifícios.

O casamento civil deu-se na casa do noivo, na Rua Primeiro de Maio, nº 79 (2ºesq.º), num edifício perto de onde nascera, que seria depois demolido com outros, para fazer um dos pilares do viaduto de acesso à Ponte 25 de Abril, inaugurada em 1966. Bem pôde o Prof. Poeira lamentar as casas onde passara a infância e a juventude. O casamento católico realizou-se na Igreja de São Francisco de Paula (na Pampulha) a 16 de Janeiro do mesmo ano.

Tiveram como padrinhos uma quantidade significativa de pessoas; relacionadas com a família da noiva, que não interessa detalhar, mas que a título de curiosidade, referimos haver um fiel da Presidência da República, um maquinista e o vice-cônsul de Portugal em Port-Talbot, no Pais de Gales, que vivia em Cardiff. A referência é significativa pela graça evidente de testemunhar a diversidade social dos meios familiares. Desconhecemos se este casamento produziu filhos, mas à data do seu falecimento, não havia e o Prof. Poeira fez testamento.

O registo de casamento civil também nos informa que nessa época, o Prof. Poeira era auxiliar de Física. É no processo relativo à condecoração com o grau de Cavaleiro da Ordem da Instrução Pública, que temos um pouco mais informação do seu currículo, sobre os “fundamentos da proposta” que transcrevemos: Diplomou-se com 16 valores. Possui ainda o curso de Serralharia, construtores de Máquinas e de Desenho Industrial da Escola do Marquês de Pombal e as disciplinas que constituem o Curso Elementar de Construções Civis do Instituto Industrial de Lisboa. De 1921 a 1938 exerceu funções de auxiliar d gabinete de Física da Escola Industrial acima referida. Continua ao serviço. É professor muito considerado e estimado no seu meio.

A Escola Industrial Marquês de Pombal ficava também em Alcântara, sendo hoje um edifício histórico dedicado ao ensino secundário. O (“novo”) Instituto Industrial de Lisboa tinha sido criado em 1918 na Escola Industrial Marquês de Pombal, sendo a origem do actual Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL).

A condecoração com o grau de Cavaleiro da Ordem da Instrução Pública foi atribuída a 29 de Maio de 1961, pelo presidente da República Américo Tomás, sob proposta do Ministro da Educação Nacional, Manuel Lopes de Almeida (1900-1980), e publicado no Diário de Governo nº 199 de 25 de Agosto de 1961. A este propósito refira-se que existe no Concelho do Cartaxo um número significativo de personalidades condecoradas com ordem honoríficas portuguesas, atribuídas pelo Presidente da República, cuja memória urge resgatar.

A notícia do seu falecimento no “Notícias do Cartaxo” refere que começara a dar aulas no Cartaxo em 1940, e perguntamo-nos o que teria motivado o Prof. Poeira a trocar Lisboa pelo Cartaxo aos 37 anos. Uma explicação possível foi a falta de professores que em dada altura se fez sentir, devido à interrupção na formação de professores para o ensino básico imposta por Salazar, levando pessoas de diversas áreas a proporem-se como professores primários, e à criação da figura do regente escolar, para pessoas que não precisavam que qualquer formação, situação bastante desprestigiante para um profissão tão importante. Por outro lado, nessa época, o Cartaxo era uma vila bastante atractiva, com pujança económica, uma oferta comercial rica, e uma burguesia sobretudo comercial, onde este professor em idade madura e experimentado socialmente no meio académico da capital, facilmente se integrou e ganhou protagonismo. Isto, pese embora, a divisão bem definida entre classes que então existia sabemos ter causado por vezes dificuldades de integração ao forasteiro.

O Prof. Poeira cedo se instalou na Rua Batalhoz, (Nº31, 1º), facto que tive conhecimento pela minha avó Maria da Piedade Pereira Santos Luís (1929-2022) que viveu nesse prédio até casar em 1950 e foi sua vizinha. O prédio, de rara beleza azulejar, ainda apresenta o monograma “MGS-1873” na porta, relativo ao antigo proprietário Dr. Manuel Gomes da Silva, o médico que foi também Presidente da Câmara Municipal do Cartaxo no século XX.

Pouco mais de dois meses depois do Prof. Poeira falecer, deu-se a Revolução do 25 de Abril e pouco depois no que tinha sido o seu apartamento instalou-se até hoje o Partido Comunista Português.

 

 

Agradecimentos:

Biblioteca Municipal Marcelino Mesquita, jornal “Notícias do Cartaxo”, 23-2-1974

Arquivo Histórico da Presidência da República (Chancelaria das Ordens)

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Registo Civil)

Memórias Fotográficas do Cartaxo


O autor escreve segundo a antiga grafia.

Isuvol
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