Paira no ar uma quase bipolaridade em relação ao que é aceitável no campo da sedução. Há os que consideram que quase tudo é assédio e os outros, os que pensam que quase tudo é permitido. Fomos ouvir cinco mulheres sobre o que é aceitável e o que não é.
As recentes denúncias no mundo da sétima arte tiveram o condão de reacender a discussão, com milhares de mulheres – e não só – a juntarem-se no movimento internacional #MeToo (eleito personalidade do ano 2017 pela revista Time) para denunciar situações de assédio sexual mas, como não poderia deixar de ser, com algumas situações denunciadas posteriormente desmentidas (ou desmontadas). A discussão e o extremar de posições ganharam proporções tais que um grupo de intelectuais francesas decidiu fazer publicar uma carta em que defende que a “liberdade de dizer ‘não’ a uma proposta sexual não existe sem a liberdade de importunar. Consideramos que é preciso saber responder a essa liberdade de importunar de outra maneira que não seja a de se fechar no papel de presa”. Está instalada a confusão! Será que essa liberdade de importunar se deve sobrepôr ao sentimento de sentir a sua intimidade invadida? Será que essa invasão o é, efetivamente, ou apenas uma tentativa (frustrada?) de seduzir o outro? Onde é que estão os limites daquilo que é aceitável? E onde é que entra o piropo nesta história?
Piropo ou assédio?
“Há ‘obras de arte’ orais dignas dos manuais de sedução”, considera a jornalista Ana Bernardino, 41 anos, confessando que “dentro dos limites do bom senso e da educação, por vezes, até sabe bem ouvir um criativo piropo. Faz parte da cultura portuguesa e há verdadeiros poetas românticos por aí (e não só em cima dos andaimes)”.
Não obstante, “muitos dos piropos que ouvimos por aí não passam de injúrias sexuais que nos causam desconforto, ultrapassam o razoável e invadem o espaço da mulher”.
Matilde Cunha, estudante, 17 anos, concorda: “é verdade que existem piropos que, pela inteligência com que parece que foram criados e a sua criatividade, podiam ser considerados verdadeiros elogios à beleza feminina e que tanto podem agradar ou desagradar, dependendo do ponto de vista de cada mulher que o ouve e a maneira como decide encará-lo”. Mas Matilde Cunha lembra, também, que “são poucos os que dominam esta arte de sedução e os gostos de cada uma são subjetivos”.
Apesar de considerar que “piropo é piropo´”, Maria João Oliveira, bancária, 48 anos, salvaguarda que “há os de bom e os de mau gosto, mas continuam a ser piropos! O piropo deixa de ser piropo e passa a ser assédio quando há lugar a perseguição e ameaça física ou psicológica”.
Os piropos só são aceitáveis quando recíprocos.
Ana Benavente
Já Ana Benavente, professora, 72 anos, não tem dúvidas de que “os piropos só são aceitáveis quando recíprocos, estamos a falar de práticas que marcam a relação homem-mulher numa sociedade patriarcal em que eles os dizem e nós, por trás do ‘leque’, coramos”.
A advogada Ana Catarina Vieira, 45 anos, lembra que “piropo é um conceito que encerra em si uma beleza e graciosidade inata que não se confunde com o conceito de sedução e muito menos com o conceito de assédio que, por si só e mesmo sem recurso à análise de significado e origem etimológica do mesmo, encerra em si uma carga negativa e até depreciativa/pejorativa que em nada se compara com o conceito de piropo”.
Por isso, considera que a distinção deve ser bem feita, até ao nível dos conceitos. “Colocar todos os conceitos no mesmo patamar é banalizar e destituir de conteúdo o conceito de piropo”. Apesar de a sedução passar, sobretudo, pelo ato de seduzir, fascinar ou encantar, “não se deve confundir com o piropo. Contudo, aceito que o piropo poderá ser um instrumento de sedução, não quer dizer que o seja, pois nem todo o piropo terá de conter o intuito de seduzir”. E pode mesmo ser proferido por homens ou mulheres, “porque com a evolução social que a nossa sociedade tem vindo a sofrer, com a tendência igualitária de direitos entre homens e mulheres, já lá vai o tempo em que apenas os homens proferiam piropos. Atualmente, é usual e socialmente aceite a prolação de piropos por mulheres, tendo por destinatários homens a quem entendam dirigi-los”.
Ainda assim, considera que “ao arrepio da sua essência, o conceito de piropo tem vindo a ser defraudado e banalizado, ao ser utilizado como referência de toda e qualquer expressão dirigida a outrem, com ou sem cariz depreciativo quando, na verdade, em meu entender, tais expressões depreciativas e até agressivas não são piropos, mas tão só e simplesmente expressões rudes, depreciativas, fruto de má educação, preconceitos e até, quiçá, fruto de deficiente autoestima dos seus emissores que, na falta de coragem ou autoconfiança, atuam com recurso ou a coberto de tais subterfúgios, como forma de compensação”.
E o que é que constitui assédio? Para Ana Bernardino, o assédio “junta as expressões verbais de conotação sexual a um comportamento invasivo, à aproximação excessiva, ao toque, à insistência.
O assédio não tem sexo, mas tem poder.
Ana Bernardino
O assédio não tem sexo, mas tem poder. O que significa que não são apenas mulheres as vitimas de assédio, também há homens entre os alvos de abuso e assédio sexual”. Resumindo, “o assédio é, acima de tudo, poder sobre o outro”. E não há desculpas, diz Ana Bernandino, “a fronteira entre a sedução e o assédio é bastante clara. O desagrado demonstrado por quem é assediado é revelador de que os limites foram ultrapassados. O ‘não’ deve ser sempre respeitado”.
E se houve tempos em que este tipo de comportamento era associado ao homem, Maria João Oliveira pensa que há muito isso mudou, já que “hoje, tanto mulheres como homens fazem os seus piropos, assim como quando se trata de assédio ambos o fazem”.
Para Matilde Cunha, “quando ouvimos algo que não gostamos, normalmente propostas de teor sexual ou elogios que entram na nossa ‘bolha de intimidade’, torna-se assédio sexual. Como diz o antigo ditado, ‘a minha liberdade termina onde começa a dos outros’, estejamos a falar de homens ou mulheres”.
“A gravidade dos piropos advém do facto de estes constituírem uma manifestação de dominação masculina, um mecanismo de promoção de insegurança das mulheres nos espaços públicos e da maneira como olham para os seus corpos como objetos”, diz Matilde Cunha, que salienta que “estes comportamentos acentuam definitivamente as desigualdades entre homens e mulheres, pois os homens assumem um papel de dominador e a mulher de dominada, ficando calada e possivelmente amedrontada perante estas situações”.
Há os de bom e os de mau gosto, mas continuam a ser piropos!
Maria João Oliveira
Ponto assente é que “o assédio tem implícita a persuasão, a insistência e por isso é um conceito que, por si só, contém uma carga de negatividade cuja simples prolação já causa arrepio”, explica Ana Catarina Vieira. É, também, por isso que considera que “um piropo não é, nem pode nunca configurar, uma situação de assédio”. Por outro lado, as “expressões malcriadas, rudes, despudoradas, depreciativas, eivadas de lascívia, obscenidades e intuitos de cariz sexual, verdadeiros chorrilhos de disparates e impropérios, atentatórias da moral e bons costumes, verdadeiramente inaceitáveis são, em meu entender, constitutivas de assédio, designadamente, sexual, porque integram o conceito e, consequentemente são penalizadas criminalmente”. Não obstante, Ana Catarina Vieira acredita que “ainda não existe uma verdadeira consciência social do que é o assédio, pelo facto de o nosso País e o correspondente ordenamento jurídico ser relativamente jovem no que toca ao tratamento destas matérias, contrariamente ao que se passa noutros países”. É por isso que diz compreender que “muitas vezes, tudo acabe tratado por igual, quando a diferença deveria impor-se. Por isso, admito que, ainda que de forma errónea, os piropos sejam comummente confundidos com assédio e sedução e que a sedução seja confundida com o assédio, sendo certo que a confusão da sedução com o assédio é mais provável, perceptível e aceitável, por ser ténue a fronteira que separa o conceito de assédio do conceito de sedução, na sua concepção pejorativa, enquanto ato de ludibriar ou atrair para o mal”.
Despertar consciências
E será que estamos perante uma ‘caça às bruxas’, fruto do movimento de denúncia recentemente despoletado na sétima arte?
A esperança das nossas entrevistadas é que se despertem consciências e que a discussão em torno destes assuntos continue. Estas denúncias “têm o mérito de serem essenciais para fomentar a discussão. As inúmeras denúncias e acusações que temos vindo a acompanhar podem, no entanto, enfraquecer uma causa que é justa e universal. Podem provocar desconfianças. E nós, mulheres, somos sempre as primeiras a desconfiar. Certo é que o que está a acontecer não é um fait-diver, não é uma moda. Sempre existiu e tem que ser denunciado”, lembra Ana Bernardino.
Já Maria João Oliveira tem a esperança que se chegue à verdadeira questão, que é o “assédio psicológico. É daqui que surge o medo, a vítima e o agressor. Sem dúvida que o silêncio é um aliado, apenas as situações de agressões graves vêm a público e muitas das vezes tarde”.
Se, por um lado, consegue compreender as denunciantes destas situações no mundo das artes, Matilde Cunha questiona “porque é que só veio a público agora, que são conhecidas e famosas, e não na altura em que sofriam com este tipo de invasão de privacidade, que não deve ser confundido com liberdade de expressão. Leva-me a refletir se não terá sido porque, na altura, ainda jovens adultas e algumas adolescentes com, possivelmente, a minha idade, se sentiam humilhadas ao admitirem o que se estava a passar ou simplesmente viam que nada seria feito, levando também em consideração que corriam outros tempos e circulavam outras mentalidades”. Por isso, acha “importante consciencializar os jovens precocemente de que, quando não gostamos de algo que nos diz respeito, devemos defender a nossa causa, tal como é o caso do assédio sexual, que não deve ser desvalorizado só porque somos mais novos e estamos na ‘idade do drama’”.
Ainda não existe uma verdadeira consciência social do que é o assédio.
Ana Catarina Vieira
Apesar de o Código Penal português já prever alguns destes crimes, ainda há uma certa cultura de silêncio. Matilde julga “que é um tema desvalorizado em muitos aspetos, algo que acontece e simplesmente se ignora porque está interiorizado que é normal na nossa sociedade” e questiona se “será que temos mesmo de aceitar esta cultura de ouvir e calar só porque nos elogiaram o rabo ou o decote, mesmo que nunca tenhamos dado permissão a tais indivíduos para o fazerem?”.
“Correndo o risco de ferir algumas susceptibilidades e sem querer fazer juízos de valor que a mim não me competem, arrisco dizer que, à semelhança do que acontece com muitas outras matérias e, por vezes, até por influência do mais amplo e fácil acesso à informação, nos termos em que hoje nos é permitidido, o mundo pula e avança ao sabor de modas e marés que, sem dúvida, são úteis e necessárias para que possamos meditar, pensar e repensar, em suma, evoluir e melhorar mas que, por outro lado, deverão ser sempre analisadas à luz de critérios de ponderação e razoabilidade que o bom senso e a sã convivência social impõem, sob pena de tomada de posições extremadas, em que facilmente passamos de um período de silêncio e franco recolhimento de determinados comportamentos, para a sua veiculação sem quaisquer salvaguardas, muitas vezes, até da própria vítima do alegado assédio”, salienta Ana Catarina Vieira, que “deverão imperar o bom senso e razoabilidade, sempre sem esquecer que o mundo é construído por nós e os nossos contributos são o oxigénio que o sustenta”.
Ignorar ou insurgir-se?
A atitude, perante uma situação de assédio, é diversa. Ana Catarina Vieira, por exemplo, confessa que “por uma vez ou outra já me foram dirigidas algumas expressões desagradáveis e comentários de cariz sexual que considero assédio mas que, talvez por defeito de profissão, numa posição de proteção da minha própria integridade moral e pessoal e porque muitas vezes não dar crédito ao infrator é a sua maior penalização e melhor forma de o desarmar, ignorei e prossegui”.
Será que temos mesmo de aceitar esta cultura de ouvir e calar só porque nos elogiaram o rabo ou o decote.
Matilde Cunha
Já Matilde fica incrédula com estas situações. “Tanto eu, como as minhas amigas, já nos deparámos mais do que uma vez com uma situação que considero assédio, por parte de homens que têm idade para ser nossos avós”, e relata uma em especial: “no verão passado, quando um senhor com uma idade já avançada decide convidar uma amiga minha para ir com ele para a terra do mesmo, por ela ser ‘muito bonitinha e boa’. Fico chocada ao ouvir este relato e pergunto-me se o senhor reagiria de maneira tão natural se uma proposta destas fosse feita a uma filha, irmã ou esposa deste”.
E termina, dizendo que “somos cada vez mais cedo abordadas e sinto que ainda há muitas adolescentes da minha idade que consideram uma brincadeira situações tão sérias que acabam, determinadas vezes, por passar dos limites. É lamentável que ainda nos cheguem tantas situações de abuso físico e psicológico, mas acredito que estas mesmas informações que hoje correm vão mudar as mentalidades dos futuros cidadãos adultos”.
Ana Bernardino admite que também já foi alvo de “brincadeiras consideradas impróprias”. E denunciou. “Não me permiti, por um segundo sequer, pensar que poderia estar a dar o sinal errado ou que o outro teria o direito de estar a ultrapassar os limites. Os meus limites. Não permiti os toquezinhos, as conversas inconvenientes, os convites despropositados”.
Mas reconhece não ser fácil. “São situações de muito desconforto. E é preciso uma rede de apoio para não nos sentirmos sozinhas. Se estão a fazer connosco também já o fizeram com outras. Se nos calarmos não podemos ajudar. Nem nos podem ajudar.”